Saúde+10: o imobilismo não nos interessa

Carlos-Otavio-Ocke-ReisA força e a legitimidade do movimento Saúde+10, conseguidas pela mobilização das entidades e coleta de 2,2 milhões de assinatura de cidadãos é uma oportunidade para estabelecermos uma agenda de avanços para o SUS. Essa é a opinião do economista Carlos Octávio Ocké-Reis, técnico de Planejamento e Pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), e autor do livro “SUS: O desafio de ser único”. Ele explica como o fortalecimento do SUS passa pela redução dos subsídios ao setor privado e afirma que os incentivos fiscais para planos de saúde é um completo absurdo. Afinal, o setor nunca faturou tanto.

Em entrevista exclusiva ao Cebes, Reis defende que o Movimento não deve declinar do pleito de vincular o orçamento do SUS aos 10% das receitas correntes brutas. Por outro lado, defende que o governo saia da sua zona de conforto e negocie com o movimento.

Cebes – O Movimento Saúde+10 tem como norte a vinculação do orçamento da saúde à Receita Corrente Bruta da União (RCBU). As entidades aceitam que o aumento dos recursos seja escalonado, mas não trocam o indexador. Você defende que haja negociação. Como se daria essa negociação de forma que fosse positiva para o SUS?

Carlos Otavio Ocké Reis: O governo federal precisa reconhecer o movimento e a legitimidade e sua proposta. Por outro lado, manter o debate sem avanços não interessa ao movimento e quem mais perde com esse imobilismo é o Sistema Único de Saúde (SUS) e a luta em defesa da saúde pública.

O movimento está correto em buscar ampliar os recursos financeiros apostando nos 10% das receitas correntes brutas, de modo escalonado ou não, como fonte permanente de financiamento do SUS. Mas nós temos que sair desse impasse e obrigar o governo a negociar com as entidades, que estão tecnicamente corretas ao pleitearem os 10% da RCBU, porque é uma receita muita mais estável.

Posto isso, vejo que o movimento tem a oportunidade de avançar mais e lançar as bases do que chamo de reforma do sistema de saúde brasileiro.

Cebes – Como se daria essa reforma e em quais frentes?

Carlos: Nós temos que avançar na discussão sobre subsídios. Os subsídios fiscais aos planos privados de saúde não é uma desoneração fiscal qualquer. O setor saúde tem um conjunto de características econômicas, entre elas uma baixa produtividade o trabalho, que faz com que esse setor tenha custos e preços crescentes. Então, para ele funcionar de maneira capitalista, necessariamente necessita de subsídios. Se não, os preços seriam inacessíveis para o mercado consumidor. Como a saúde da força de trabalho é política e socialmente relevante, ou o Estado fortalece o SUS ou subsidia o mercado.

O subsídio fiscal hoje, apesar da concentração do mercado dos planos privados e a presença do capital financeiro no setor saúde, ainda é uma mola importante da acumulação desse setor. Basta você olhar o dado de lucro líquido desse mercado e o dado de renúncia fiscal para planos de saúde.

Então esse é um momento importante para se brigar pela reestruturação do financiamento público, canalizando o recursos que hoje são indiretos como diretos é duplamente importante. De um lado você retira uma peça importante da reprodução econômica desse setor e de outro você fortalece o SUS. O movimento tem a oportunidade histórica de avançar para superar a tendência à privatização do sistema de saúde e à mercantilização do SUS.

Cebes – Mas essa reforma do sistema se restringiria ao financiamento?

Carlos: Não! Mas o primeiro passo seria ganhar nas negociações os 10% das RCBU e aí avançar. Por exemplo, poderíamos incluir nas mesas de negociações que os planos de saúde fossem regulados de maneira mais forte pelo Estado. O que passa pela mudança do artigo 199 da Constituição. Uma vez que a saúde é livre à iniciativa e não é um regime de concessão, isso fragiliza a capacidade do Estado de regular. Essa seria uma maneira de se fazer uma reforma institucional do mercado de planos de saúde no Brasil.

Do ponto de vista estratégico, é a oportunidade, numa mesa de negociação com o governo, além de se esclarecer a aplicação do recursos do Pré Sal, que, em primeiro exame, é muito difuso. É importante a transparência.

É importante fazermos paulatinamente essa mudança do privado para o público, em relação aos subsídios. Ou seja: não será mais gasto indireto do privado, mas vai transformar em gasto direto para o SUS. O fortalecimento do SUS passa pelo fim do parasitismo do mercado.

Cebes – Na prática, como se daria isso?

Carlos: Objetivamente, o governo precisa tomar alguma medida e da mesma forma que o incremento pela receita corrente bruta seria escalonado a redução dos subsídios também seria. Essa redução do subsídio seria no longo prazo. Outra alternativa é tirarmos, inicialmente, o subsídio das pessoas jurídicas e de setores que estejam faturando muito. Com as pessoas físicas, é preciso fazer um corte olhando para a renda e a idade.

Nessa perspectiva de escalonar redução dos subsídios, inicialmente, é uma forma de tentar tornar os subsídios mais equitativos, embora ele seja desigual em relação a quem não os tem, antes de eliminá-los. É preciso parar a sangria de recursos públicos que vão para o setor privado. Na prática, o financiamento dos planos de saúde hoje é igual era o seguro social lá atrás é tripartite: com indivíduo ou famílias, empresas e governo. As empresas desses setor andam muito bem das pernas, uma vez que se concentrou, se centralizou e se internacionalizou. O subsídio do ponto de vista da oferta do mercado de planos de saúde é um completo absurdo. Nunca ganharam tanto dinheiro.

Cebes – Você fala da necessidade de maior regulação do setor privado. Como que se avança nesse sentido?

Carlos: Para fortalecer a regulação sobre o mercado, além de você reduzir a captura da ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar), é preciso aproveitar a força e legitimidade do movimento para convencer a sociedade que, tirando a medicina liberal, esse setor tem que ser regido por concessão. Não pode se construir um hospital só porque se quer construir um hospital, fora da lógica de organização do sistema. Nem plano de saúde. Isso tem que ser uma concessão do Estado. Vivemos agora um momento muito importante e histórico para ficarmos brigando só por financiamento.

Eu acredito que se não tivermos um SUS puro sangue no longo prazo e, simultaneamente, fazer que o setor privado funcione como seguro social, menos chances de termos o SUS que queremos. Principalmente se considerarmos a desigualdade, a violência social, os baixos níveis educacionais e culturais do nosso povo. Porque a construção de um sistema como o SUS Constitucional envolve mudanças de caráter mais estrutural que hoje, infelizmente, não estão dadas.

Cebes – Além do Projeto de Lei de Iniciativa Popular (PLIP) que sustenta o Saúde+10 existem várias propostas dentro o congresso que surgiram para minimizar a falta de recursos dos SUS. Por exemplo: taxação de grandes fortunas e lucros dos bancos; sobre taxas a alimentos gordurosos e ricos em açúcar, carros e motos; criação de nova contribuição social; e fundo social o pré sal. Você acha que governo e movimento deveriam considerar essa pulverização de fontes para chegar a um acordo ou a luta deve continuar até a vitória em torno dos 10% da RCBU?

Carlos: No dia que houver força na sociedade e uma correlação de forças no congresso, de modo a aprovar uma reforma tributária que contemple esses pontos e outros pode ter certeza que a possibilidade do SUS constitucional ser real estará muito mais perto. Isso é algo de grande dimensão. Tanto que nunca conseguirmos aprovar, depois de 1988, uma reforma tributária que pudesse dar conta das necessidades de financiamento do Estado brasileiro.

A mobilização na sociedade e as eleições podem alterar a correlação de forças no Congresso, de modo a aprovar uma reforma tributária que contemple esses pontos, em direção ao SUS universal, integral e de qualidade com carreiras de Estado. Isso é algo de grande dimensão, estratégico, junto com a repactuação dos encargos financeiros da dívida pública. Mas isso não está dado hoje. Afinal, existe uma especificidade muito complexa na área da saúde que perpassa a estrutura de classe. Mas hoje nós temos unidade em torno dos 10% da RCBU, então vamos apoiar. Se temos essa unidade, vamos nessa linha. Afinal, o futuro dura muito tempo, como já nos foi dito.

Cebes – Então os problemas mais estruturais da saúde precisam de um olhar que vá além do setorial?

Carlos: A setorialização da política é uma das principais armadilhas que muitos companheiros, bem intencionados, incorrem. Uma vez que você setorializa o problema passa a ser o sistema de saúde e não a ordem social e econômica e as relações de produção capitalistas. Temos que entender a saúde como uma questão politicamente intermediada.

É importante pensar assim, uma vez que o SUS é farol para reforma de um conjunto e políticas sociais, uma vez que nós temos um sistema único. Então, se conseguirmos avançar no ordenamento institucional, econômico e político do SUS isso pode ser um farol para um conjunto de reformas no Estado brasileiro.

Precisamos compreender, profundamente, a determinação social da saúde. Se considerarmos a pobreza, a desigualdade, a violência social, os baixos níveis educacionais e culturais da população – que pressionam o dia a dia o sistema – vê-se que, de um lado, o SUS desconcentra renda e aumenta o bem-estar, mas, de outro, sua viabilidade depende de mudanças de caráter estrutural.