Brasil, o país dos calhordas
Por Matheus Pichonelli/ Carta Capital
O Brasil decolou, dizia a publicação britânica. É um lugar seguro para investimento, garantia a agência de risco. Somos um povo que acredita sempre e não desiste nunca, falava a propaganda oficial. Estamos prontos para os megaeventos, juravam as entidades esportivas.
Talvez nenhuma dessas conclusões fosse totalmente falsa. Mas a euforia em torno das nossas possibilidades como nação transformou uma população esquecida no rodapé da América Latina, a única a falar português em toda a região, em um país de orgulho latente. O país do futuro parecia deixar a prerrogativa para o passado: éramos o presente. Éramos o local onde todos queriam estar, investir e conhecer. Vivíamos todos na melhor cidade da América do Sul. E não havia melhor lugar do mundo para se viver. Às nossas potencialidades turísticas e hospitaleiras somava-se a consolidação de uma democracia amadurecida e com direitos plenos, sociais, civis e políticos.
Nossa autoimagem nunca foi tão lustrada e nosso ego, tão inflado. O avanço econômico dos últimos anos, o acesso a bens e serviços e a satisfação captada em qualquer pesquisa de opinião elevaram o nosso moral a tal ponto que de fato acreditamos que nada mais poderíamos querer da vida a não ser uma casa própria e uma tevê de tela grande para assistir ao Faustão aos domingos. Essa sensação produziu uma percepção inflacionada em praticamente todos os setores da sociedade, a começar por seus mandatários.
De junho do ano passado para cá, exato um ano antes da nossa festa de debutante chamada Copa do Mundo, os cadáveres insepultos das nossas apostas começaram a gritar debaixo de nossos tapetes. Estávamos nas fileiras das principais economias do mundo, apontávamos os dedos na cara das nações amigas e inimigas nos discursos de abertura da Assembleia Geral da ONU, mas não tínhamos ônibus para chegar à escola ou ao trabalho. Os que tínhamos eram caros e ineficientes. O direito à cidade era um sapato pequeno demais para nossas possibilidades, e fingimos que isto não era um problema até que o calo explodiu. O resultado todo mundo se lembra: as manifestações nos fizeram lembrar que a sensação de paz era aparente, e que só não apanhávamos diariamente do Estado, como em outros tempos, simplesmente porque não estávamos na rua a exigir que o Estado funcionasse.
De lá para cá, o Brasil que parecia dormir da Belle Èpoque acordou em um terreno minado de sua herança colonial. E, longe do esplendor que prometíamos entregar em 2014, o ano da nossa consagração, nosso cartão de visitas transmitido mundo afora eram cabeças cortadas em um presídio do Maranhão, jovens incriminados por invadirem os templos do consumo em São Paulo, um garoto preso ao poste com a trava de uma bicicleta e uma mulher arrastada em um carro de polícia após ser baleada e jogada, como um saco de batata, em um porta-malas na periferia do Rio. Às vésperas da nossa grande festa, estes eram os casos mais visíveis de um país que guardou seus esqueletos embaixo do tapete enquanto estourava rojões e comemorava o fim da monarquia, da escravidão e das ditaduras. Faltou (ou melhor, não faltou) combinar com os monarcas, os escravistas e os ditadores, todos muito bem representados em autarquias loteadas, bancadas no Congresso, tribunais de Justiça, tribunais de contas estaduais e tribunas da mídia, impressa ou eletrônica, de onde reagem diariamente contra quem reage à nossa exclusão ainda latente.
A consequência desse passado mal resolvido está manifestada no cinismo de quem, cinquenta anos após a instalação do período mais nefasto da história nacional, ainda hoje cospe nas poucas brechas de direitos civis, sociais e políticos que conseguimos costurar a duras penas. Esse cinismo, misto de má fé com ignorância, pôde ser observado na semana passada nas principais cidades do país, quando viúvos do golpe de 64, muitos ainda imberbes, foram às ruas confessar nossa falência moral e humana ao gritar: “queremos a volta dos militares”.
Na mesma semana, um calhorda do regime se sentou em frente aos torturados pelo regime e deu detalhes de como fazia para se livrar dos corpos de quem se opôs à agora saudosa ditadura: cortava os dedos, para limpar as digitais, quebrava dente por dente, para evitar a identificação dos infelizes pela arcada dentária, e jogava os corpos ao mar, com as barrigas perfuradas para afundarem em paz. Estava arrependido? “Não. Se o sujeito estivesse em casa com a mulher e os filhos nada disso teria acontecido.”
Quando alguém grita para o retorno deste período, em que a ordem era imposta no grito ou no esquartejamento, grita contra a própria incapacidade: não sabemos nos livrar da água suja da banheira do bebê sem jogar a banheira, a água e o bebê junto. Para eles, o mal necessário não é uma condição temporária; para eles, o mal é sempre necessário. Por isso assumem, alto e bom som, que, em troca de uma liberdade mal ajambrada, aceitam viver em cativeiro.
Às vésperas do aniversário do golpe, estas manifestações seriam tratadas como um transtorno relativo à Síndrome de Estocolmo, quando a vítima passa a criar afeição pelo sequestrador. Mas os calhordas que hoje gritam contra a libertinagem do voto livre, que na cabeça dele produz resultados disformes graças à ignorância dos estados menos abastados, comprados a crédito fácil e política distributiva, não sofreram as consequências diretas do golpe, apenas a indireta. Não se sabe se são calhordas porque burros ou burros porque calhordas, mas formam a base de uma mesma tragédia. Essa tragédia, criada no autoritarismo, apta a obedecer e nunca a pensar, produz estragos em todos os campos. Para ele, o mundo é injusto por haver direitos demais, e não porque ele nos foram, e são, negados por tanto tempo.
Por isso os calhordas pedem, em coro, para que essas liberdades sejam cassadas em nome de uma miragem: a ordem de seus antepassados. Para eles, há roubo nas ruas porque há liberdade nas ruas, e não porque não somos capaz de ressocializar nem a nossa indigência, quanto mais nossos presídios. Para eles, há política afirmativa porque a maioria da população quer privilégio, e não porque ela jamais teve acesso a educação básica. Para eles, há corrupção porque existe voto, e não porque votamos mal e o sistema de representação pede aperfeiçoamentos. Para eles, é sempre mais fácil jogar a água suja da banheira com o bebê dentro.
É mais ou menos o raciocínio que leva a sustentar, em pleno 2014, que a vítima do estupro é culpada pelo estupro. Ou que ela merece ser estuprada porque não sabe se comportar. Porque aceitamos a ideia de que nossos instintos são cláusula pétrea na formação do nosso caráter, e tudo em volta é tentação ou motivo para o uso da força. E que o crime reside em quem desperta esses instintos, e não em quem é simplesmente incapaz de controlá-lo. A pesquisa do Ipea sobre a percepção da violência contra a mulher escancarou, em números, o que era verbalizado em todos os cantos do Brasil real, seja uma linha de trem à meia-noite, seja em uma mesa de jantar entre pessoas de bem. Se não sabemos votar, melhor cassar o direito ao voto. Se não sabemos nos comportar em um regime de exceção, apaga-se, com brocas e parafusos, o direito à vida do meliante. Se não sabemos nos comportar diante de uma mulher de saia, melhor banir a saia. Em todos esses casos, a vítima é sempre a culpada por provocar a fúria do seu agressor.
Há 50 anos o cinismo brasileiro vencia a esperança no muque. Passada a ditadura, acreditamos que o caminho natural das coisas levaria a esperança a vencer o medo, mas a vitória foi só parcial: não eliminamos a ignorância, não atacamos os discursos legitimadores da violência, não nos precavemos contra as formas visíveis e invisíveis de agressão. Hoje todos nós temos o direito ao voto, mas muitos de nós, muito além dos rostos patéticos da segunda edição da Marcha da Família pró-golpe contra a Liberdade, admitimos à boca pequena o nosso desconforto com o sistema representativo que permite ao pobre ou ao morador de outras paragens votarem em quem eles querem, e não em quem nós queremos. Hoje temos uma mulher na Presidência, e muitas em chefias de companhias, mas ai delas se elas não se vestirem adequadamente. Hoje temos institutos capazes de captar o raciocínio naturalizado de um país de calhordas, mas há gente disposta a desconfiar do óbvio e dizer que uma mulher de saia é tão descuidada como um rico a portar um Rolex em área perigosa. Em um país de calhordas, passa a ser “perfeitamente compreensível” a confusão masculina entre relógios e vaginas: é tudo posse, e não há nada ao redor de um ou de outro. Nada é humano o suficiente a ponto de provocar a mínima indignação, a não ser o que tange ao bolso.
E porque não levamos suficientemente a sério a ideia de que a desigualdade extrema nos levaria a uma indigência extrema, e acreditamos que as soluções negociadas fariam com que as placas tectônicas se acomodassem à superfície normalmente, agimos como se os avanços obtidos nas últimas décadas fossem suficientes para nos conceder um grau de civilização similar ao grau de investimento aferido anos atrás pelas agências de risco. As decapitações em Pedrinhas, a morte de Claudia da Silva Ferreira, a exposição pública de um jovem amarrado ao poste no Rio e os números sobre a vulnerabilidade feminina mostram que este avanço civilizatório chegou a um limite. O limite da origem, da cor e do sexo.
Após a divulgação da pesquisa, poucas, pouquíssimas pessoas decidiram se mobilizar e tentar começar a mudar a história a partir do discurso. Foram atacadas por hackers e chamadas de feminazis pelos mesmos calhordas que sobreviveram impunes a todos os regimes, do monarquista ao republicano, do escravista ao assalariado, do regime de exceção ao regime democrático. Em todos eles uma estrutura elementar ficou de pé: a estrutura da desigualdade que coloca diariamente em risco todos os direitos formalmente adquiridos. Como o de ser livre para ir e vir sem agredido. Enquanto esta estrutura continuar em pé, civilização alguma poderá se dizer consolidada, mas apenas tolerada por quem ainda tem o domínio sobre todos os campos, inclusive o do corpo. Caso contrário, a barbárie será pura e simplesmente naturalizada. É isso o que governo nenhum até agora conseguiu detonar na base. Ou então não haveria tantos calhordas empregados a negar em público a violência contra a mulher, a exclusão contra os pobres, a truculência de uma ditadura que de revolução não teve nem a sombra.
O silêncio sobre todos os abusos engolidos diariamente é o nosso último e mais gritante cartão-de-visitas em ano de Copa do Mundo. É ele que permite balançar a cabeça e seguir a vida normalmente como se nós não fizéssemos parte desta tragédia pelo discurso, pela ação ou pela indiferença.
Falhamos, como humanos, cada vez que colocamos no tapete a tragédia que fingimos ignorar. A pesquisa do Ipea sobre a percepção da violência contra a mulher era, ou é, uma das raras oportunidades de lavar ao sol esse tapete. Mas as forças do atraso, como sempre, preferem minimizar. O país dos calhordas agradece.