Sanitaristas da América Latina estão órfãos: Morre Mario Testa
Intelectual orgânico, Testa criou metodologia de planejamento estratégico comprometida com as necessidades sociais e marcou a luta pelo Direito à Saúde na América Latina
O médico sanitarista Mario Testa faleceu hoje (5/11), aos 99 anos, em sua casa, em Buenos Aires. A informação foi confirmada por Hugo Spinelli, seu discípulo. Testa perdeu, há seis meses, sua companheira de vida, Asia Selvin, com quem teve dois filhos, Pablo e Alejandro. Intelectual orgânico e engajado, Testa formou gerações, é um dos fundadores da Associação Latino-Americana de Medicina Social (Alames), e continuou ativamente repensando e criticando suas próprias teorias.
“Mario era um homem extremamente amoroso com todos. Acho que isso o tornou o grande mestre que ele foi: essa disposição de doar seu saber para todas as pessoas que se aproximavam em busca de conhecimento. A capacidade de juntar o planejamento técnico com uma visão política estratégica e formulação teórica tornava ele um intelectual único. O planejamento exige muita técnica – e o Mario tinha essa técnica – mas era também um intelectual militante comprometido com a transformação social”, lamenta Sônia Fleury, ex-presidente do Cebes.
“Mario Testa é uma referência para todos nós de saber, generosidade, liderança e de formação de gerações de sanitaristas na América Latina. Ele colocou em outro patamar a produção acadêmica sobre planejamento, poder e política de saúde, instrumentos poderosos para a luta política na saúde coletiva”, afirma o ex-presidente do Cebes e ex-ministro da Saúde, José Temporão.
Mario Testa “praticamente inventou uma metodologia de planejamento e gestão na América Latina e é uma referência para todos nós”, reforça o cebiano Jairnilson Paim. O método Cendes/OPAS (1965), criado por Testa, é um enfoque sistêmico de Programação de Recursos de Saúde, atrelado a análises de custo/benefício, que apresentam um custo relativo menor por morte evitada.
“A verdade é que na Bahia aprendi muitíssimo”, afirmava Testa, que esteve na UFBA antes da fundação do Instituto de Saúde Coletiva (ISC/UFBA), e assessorou Francisco de Assis Machado, o Chicão, entre 1976 e 1978, no projeto Montes Claros, uma experiências que daria origem, mais tarde, ao SUS.
“Eu convivi com Testa em Montes Claros, onde ele montou os sistemas de planejamento estratégico e de informações junto com o Mario Hamilton. Ele se desdobrava para formar várias pessoas, em todas as instituições formadoras dos trabalhadores do SUS. O SUS deve muito a Mario Testa, porque ele formou os quadros de planejamento e gestão e criou os intrumentos técnicos que deram o origem ao sistema de informações na área de Saúde”, conta Sônia Fleury.
Não há planejamento sem o sujeito
“O curioso é que o próprio Mario foi o maior crítico de si mesmo. Ele próprio revisava as questões, as formulações”, conta o ex-presidente do Cebes Paulo Amarante, que conviveu com Testa no México, onde estudou na década de 1980.
Já consagrado, Mario Testa foi convidado pelo então presidente do Cebes, Paulo Amarante, para uma conferência, quando a Fiocruz completou 100 anos. “O Mario veio com a esposa, a querida Asia. Todos os grandes nomes da Saúde Coletiva brasileira compareceram para assistir a conferência de Mario Testa. Todo mundo querendo conversar, conhecer as novas formulações. E ele fez uma autocrítica inesperada, uma reformulação no campo do planejamento: ‘Esquecemos de um aspecto muito importante no campo do planejamento, que é o sujeito’. E começou a falar de Jung, da psicanálise, da subjetividade, dizendo que não há planejamento sem envolvimento do sujeito, da subjetividade”, conta o ex-presidente do Cebes.
Testa e o Brasil: Relações de poder e conquistas sociais
Sua influência intelectual e política na Reforma Sanitária alcança todo o Brasil. “Testa foi meu professor no Instituto de Medicina Social (IMS/UFRJ) e uma das cabeças mais brilhantes da saúde pública. Uma pessoa doce e generosa. Foi um dos responsáveis pela formação de uma geração de sanitaristas”, conta a diretora-administrativa do Cebes, Ana Tereza Camargo.
“Mario atravessou o Grande Rio. Fecundou o debate da Saúde Latino-americana a partir da década de 1970. Inspirou, para a teoria e para a prática, a luta pela construção de sistemas de saúde justos e equitativos nos nossos países. Ensinou-nos que para essa tarefa era primordial examinar as relações de poder na sociedade que se projetam sobre as condições de saúde e sobre os sistemas de cuidados. Era um militante radical que nunca renunciou ao seu engajamento como professor e militante para a democratização de nossas sociedades. Para mim, particularmente, talvez tenha sido meu maior patriarca e amigo que abriu o caminho do planejamento crítico engajado durante sua passagem pelo Brasil onde convivemos no Instituto de Medicina Social da UERJ. Mário Testa vive!”, afirma o ex-presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), José Noronha.
“Perdemos um grande mestre da América Latina para luta pelo direito à Saúde. Mario Testa foi um farol, que iluminou todo o movimento da Medicina Social, da luta por sistemas de Saúde e por planejamento estratégico comprometido com as necessidades sociais”, afirma Ana Costa. “Mario Testa deixa uma obra provocante e instigante para nossa geração e gerações futuras”.
Saiba mais
UnaSUS oferece módulo sobre o pensamento estratégico de Mario Testa.
Livro Pensar em Saúde está disponível para download gratuito no site da Universidade Nacional de Lanus.
Reportagem: Clara Fagundes/Cebes