Teste Vocacional: algumas perguntas são obrigatórias para quem vai dirigir a ANS
Por Ligia Bahia*
As sabatinas realizadas pelos senadores para os indicados para cargos de diretores da Agência Nacional de Saúde Suplementar deveriam testar vocações para o exercício de responsabilidades públicas e compromissos com as normas legais. Os currículos dos que foram designados são bons referenciais, mas as experiências passadas, sejam gloriosas ou medíocres, não são as únicas credenciais a serem apresentadas para o exercício de funções no futuro. O sistema de saúde no Brasil possui um amplo setor privado. Quase sempre, a comprovação de dedicação a funções empresariais ou à organização do SUS são ocasionais, todos têm que ganhar a vida e nem sempre as escolhas entre o público e o privado na saúde estão disponíveis em formato puro. A dança das cadeiras de empregos na área é um jeito de adaptação às melhores ofertas do momento. É exatamente por essa razão, a existência de relações entre o público e privado frequentes, mas nem sempre refletidas, que o exame de possíveis dirigentes de instituições públicas de saúde é relevante.
Espera-se que as lideranças do órgão que regula situações tensas e complexas sejam capazes de pensar e propor para o debate as melhores alternativas para a saúde no país. Quem só consegue articular uma ou duas frases sobre a necessidade de convivência entre o público e o privado e repete que o cobertor é curto não poderia sequer se habilitar ao teste.
Algumas perguntas são obrigatórias para quem vai dirigir a ANS. A principal diz respeito ao conhecimento dos candidatos sobre o número de pessoas com câncer, diabetes, hipertensão, obesidade, hepatites, insuficiência renal, síndromes demenciais e problemas de saúde mental, e o que os planos de saúde estão ou não fazendo para prevenir novos casos e tratar os atuais. Os principais motivos de queixas se referem à negação ou postergação de coberturas para atendimento a esses casos. O que a ANS tem a dizer e dirá sobre o assunto? Será obrigatória a participação das empresas de planos nas campanhas de prevenção? Haverá punição por perdas de oportunidade de diagnóstico e tratamento? Quais são as medidas para evitar a judicialização? Plantões da ANS, atendimento personalizado para impedir conflitos? O que fazer com uma central de reclamações, que é em si motivo de queixas?
A segunda questão é sobre o ressarcimento ao SUS, pulando a parte do contra ou a favor. Já que todos dizem que cumprirão o que manda a lei sem explicar como, para evitar que ressarcimento vire mais um dos mistérios do consenso que dão em nada, sugestões ajudam. Que tal lançar uma campanha pública de esclarecimento? Clientes de plano de saúde que usam medicamentos caros distribuídos pelo SUS ou outros serviços receberão uma carta da ANS, explicando que é o sistema público que está pagando pelo tratamento e que isso será devidamente cobrado das empresas privadas. E o cartão SUS, a identificação única, vai virar lenda ou a ANS irá trabalhar ativamente para que o Brasil finalmente modernize e universalize o sistema de informações sobre assistência à saúde?
Na sequência, cabe a interrogação sobre a própria ANS. As agências reguladoras são autarquias especiais e deveriam manter suas burocracias hiperespecializadas, portanto autônomas, com recursos advindos de suas próprias atividades, tais como a cobrança de taxas, registros e multas. Saltando de novo por cima do blá-blá-blá a respeito de que a ANS não tem como missão quebrar o mercado, o que pode e deve ser feito para operacionalizar a legislação? O acordo com as empresas que reduziu os valores de licença para comercialização de produtos e penalidades quebrou o pilar de sustentação financeira autônoma da ANS. A recente polêmica sobre a anistia das multas às empresas vem bem a calhar. Qual é a posição dos indicados a respeito das multas? E sobre as deduções e subsídios fiscais?
A sabatina não é uma prova oral, os nomes escolhidos foram previamente filtrados, segundo critérios estabelecidos pelo governo. São confiáveis para coalizões políticas no poder e no âmbito setorial. O Senado tende a aceitar as sugestões e não pode demorar muito para aprovar os novos dirigentes porque cargos estratégicos vagos podem paralisar o país. No entanto, o fato de um dos indicados ter se dedicado durante muito tempo à defesa de interesses empresariais e se posicionar contra o ressarcimento ao SUS tomará algum tempo de discussão e deliberação sobre o perfil das lideranças de órgãos públicos. Como a indicação baseou-se exatamente na aptidão empresarial de um homem que não é néscio, o reconhecimento oficial de seus talentos e boas maneiras pelo governo funciona como uma carta de recomendação, uma autorização para o ingresso na carreira pública. Caberá aos senadores a anuência ou rejeição de pessoas talhadas para uma ANS concebida como guardiã dos planos de saúde. O crescimento do setor privado em proporção geométrica e do público em proporção aritmética não é maldição ou graça divina. O brutal desequilíbrio gerado pelo fato de três quartos da população brasileira contarem com recursos para a saúde similares a um quarto do segmento de maior renda é um desafio inescapável para todos os que atuam ou não na saúde. As ações políticas são intencionais, e os responsáveis por conduzi-las não devem onerar os outros pelas consequências dos seus atos. A mudança dos rumos das práticas de apropriação do aparelho estatal como fonte substancial em si de riqueza requer a contenção do uso de apelos à fantasia, seja para disfarçar práticas e convicções privatizantes, seja para prometer mundos e fundos levianamente e seguir impondo novos meios para subtrair recursos do fundo público com a finalidade de financiar os empresários da saúde. Sem dar nome aos bois e às boiadas as disputas se atêm aos cargos, e não às causas.
* Ligia Bahia é professora da UFRJ