Laranja transgênica já está em fase de testes no Brasil

Por Maurício Thuswohl/ Da Repórter Brasil

Os cães ladram, a caravana transgênica passa. Enquanto diversas organizações representativas da sociedade civil brasileira tentam impedir, através de ações e projetos junto aos poderes Legislativo e Judiciário, a expansão descontrolada de alimentos e outros organismos geneticamente modificados no Brasil, o país segue, ao fim do primeiro trimestre de 2014, na mesma toada expansionista que lhe garante um lugar no pódio dos maiores produtores e consumidores mundiais de transgênicos.

Segundo dados do “Relatório 2013? do Serviço Internacional para a Aquisição de Aplicações Biotecnológicas (ISAAA), o Brasil já tem 40,3 milhões de hectares de transgênicos cultivados, ficando atrás apenas dos Estados Unidos. E poderá nos próximos meses dar um salto qualitativo em sua posição, com o início da produção da primeira variedade de soja transgênica inteiramente desenvolvida no país – parceria entre a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) e a transnacional Basf – e a conclusão dos primeiros testes de campo realizados com frutas cítricas geneticamente modificadas.

O Brasil é o maior produtor mundial de laranjas in natura e também de suco de laranja. De acordo com a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), a safra 2013/2014 no estado de São Paulo e no Triângulo Mineiro rendeu 13,8 milhões de toneladas do cítrico. Em 2013, segundo a Associação Nacional dos Exportadores de Sucos Cítricos (CitrusBR), o volume de negócios atingiu 6,5 bilhões de dólares, sendo que 85% da safra nacional é transformada em suco. Desde fevereiro, o país já tem sua primeira plantação de laranjeiras transgênicas ao ar livre, devidamente autorizada pela Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio), órgão responsável por aprovar todos os pedidos de pesquisa, produção e comercialização de qualquer tipo de organismo geneticamente modificado no país.

No município paulista de Ibaté foram plantadas 650 mudas de laranjeira doce transgênica, trazidas da Espanha pelo Fundo de Defesa da Citricultura (Fundecitrus), entidade ligada aos grandes produtores. O projeto, coordenado pelo espanhol Leandro Peña, um dos maiores especialistas mundiais em biotecnologia de cítricos, e integrado por um grupo de pesquisadores brasileiros, é pioneiro, uma vez que, até maio do ano passado, a CTNBio proibia os experimentos com cítricos transgênicos que incluíssem floração e frutificação da planta.

Impacto na produção

Segundo o Fundecitrus, as laranjas transgênicas testadas em São Paulo poderão ser resistentes ao cancro cítrico e à pinta preta, duas das principais pragas que assolam os laranjais no Brasil. O eventual sucesso dos testes de campo poderá causar em alguns anos um impacto significativo na produção de cítricos brasileira e, conseqüentemente, no mercado global do setor. Até o fim do semestre, informa a entidade, duas outras plantações experimentais com laranjas transgênicas serão iniciadas, uma no sul de São Paulo e outra no norte do Paraná. A expectativa dos pesquisadores é que as laranjeiras comecem a produzir em até dois anos e meio, mas serão necessários sete anos e meio para que a produtividade das plantas modificadas possa ser observada em todo o seu ciclo, que dura cerca de cinco safras: “A avaliação sobre a resistência das frutas às doenças estudadas estará concluída ao fim deste período. Mas, após essa pesquisa, muitas outras deverão ser feitas até que a laranja transgênica seja viável comercialmente, bem como muitas autorizações deverão ser encaminhadas à CTNBio”, diz a Fundecitrus, por intermédio de sua assessoria de imprensa.

Reações

Já a primeira soja transgênica desenvolvida pela Embrapa, aprovada para comercialização pela CTNBio desde dezembro de 2009, deve começar a ser produzida em larga escala ainda este ano. Batizada como Cultivance e geneticamente modificada para resistir a agrotóxicos (herbicidas da família dos imidazolinonas) produzidos pela Basf, a nova soja transgênica demorou a chegar ao mercado porque os produtores brasileiros esperavam a aprovação de sua comercialização pelo governo da China, o que só aconteceu no fim do ano passado. Com a chegada do novo produto e a garantia de um comprador de peso, é possível que a área plantada com soja transgênica no Brasil – atualmente estimada em 92% da área total dos cultivos de soja, segundo o relatório do ISAAA – se aproxime dos 100%, colocando em risco as plantações de soja convencional e a já combalida biodiversidade do grão no país.

Nada parece conter a expansão dos transgênicos no Brasil, mas parte da sociedade civil brasileira permanece empenhada em evitar abusos. Como último desdobramento da ação civil pública ajuizada em junho de 2007 pelas organizações Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), Assessoria e Serviços a Projetos em Agricultura Alternativa (AS-PTA), Terra de Direitos e Associação Nacional de Pequenos Agricultores, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4) decidiu por unanimidade, em 13 de março, proibir nas regiões Norte e Nordeste do país a comercialização do milho transgênico Liberty Link, produzido pela transnacional Bayer. A decisão determina que a comercialização do milho transgênico somente poderá ser retomada após a CTNBio garantir a realização de estudos sobre os riscos trazidos por esse produto à saúde humana e animal e ao meio ambiente. O TRF-4 também determinou que a CTNBio “dê ampla publicidade” a todos os documentos relativos à liberação do milho transgênico.

Para o desembargador federal Cândido Leal Júnior, que relatou o caso analisado na 2ª Seção do TRF-4, a CTNBio simplesmente ignorou as diferenças entre os diversos biomas existentes no Brasil: “Os estudos não foram realizados em todos os biomas brasileiros nem tiveram abrangência geográfica capaz de dar conta dos aspectos relacionados à saúde humana, à saúde dos animais e aos aspectos ambientais em todas as regiões brasileiras. Não é possível escolher apenas alguns pedaços do território nacional, segundo a conveniência comercial ou o interesse econômico do interessado, para as pesquisas sobre a biossegurança do milho transgênico”, disse o relator ao site da Justiça Federal.

Agora, a expectativa das organizações que integram o movimento Por um Brasil Livre de Transgênicos é que a decisão do TRF-4 crie uma jurisprudência que permita o questionamento de outras culturas geneticamente modificadas no país, já que praticamente nenhum dos estudos aceitos pela CTNBio nos últimos anos trata das especificidades dos biomas brasileiros: “Essa decisão do TRF-4 se somará à luta popular por um modelo de agricultura baseado na agroecologia, que garanta direitos aos agricultores e alimentos saudáveis e sem agrotóxicos para a população”, diz Fernando Prioste, advogado da Terra de Direitos. A batalha foi vencida, mas a guerra em torno do tema está longe de ter um fim, já que diversas empresas que trabalham com transgenia anunciaram que apresentarão recursos ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) e até mesmo ao Supremo Tribunal federal (STF) para derrubar a decisão tomada pela Justiça Federal na 4ª Região.

Ações contra os transgênicos

Outras duas ações impetradas no Judiciário em março podem ter impacto direto sobre a produção de transgênicos no Brasil. Em uma delas, o Ministério Público Federal pede ao Ministério da Agricultura a suspensão dos registros e a consequente proibição da comercialização dos herbicidas glifosato, campeão de vendas no Brasil, e do recém-lançado 2,4D, além de outros sete agrotóxicos utilizados no país (abamectina, carbofurano, forato, lactofem, paraquate, parationa metílica e tiram). Todos esses produtos, segundo o MPF, são apontados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) como potencialmente danosos ao meio ambiente e à saúde humana e animal, fato que justifica a ação.

No entanto, em decisão divulgada no dia 7 de abril, a Justiça Federal negou o pedido do MPF. Para o juiz Jamil Rosa, da 14ª Vara Federal, não há consenso técnico sobre efeitos negativos da substância que justifiquem o cancelamento imediato dos registros. Ainda cabe recurso.A segunda ação pede especificamente a proibição do 2,4D, componente tradicionalmente utilizado na fabricação de armas químicas como o agente laranja, usado como arma química pelos durante a Guerra do Vietnã para destruir florestas e cultivos e que culminou na morte e adoecimento de milhares de pessoas. A ação, segundo o MPF, tem o objetivo de tentar evitar que as vendas do 2,4D deem um salto este ano, já que um novo tipo de soja modificada para ser resistente a esse herbicida começou a ser plantada no Brasil na atual safra. O MPF pede também que a CTNBio seja proibida de fazer qualquer liberação comercial relativa ao 2,4D até que a Anvisa apresente uma posição oficial pública sobre os riscos trazidos pela utilização do produto.

Projetos

Já no Legislativo, projetos antagônicos prometem canalizar as ações de adversários e apoiadores dos transgênicos nos próximos meses. Tramitando atualmente na Comissão de Agricultura da Câmara dos Deputados, o Projeto de Lei 6.432/2013, de autoria do deputado Ivan Valente (Psol-SP), proíbe o cultivo, a venda e a importação de sementes de plantas alimentícias transgênicas em todo o território nacional. Em carta aberta enviada aos deputados da comissão, o Idec pede que o projeto seja aprovado e ressalta que a expansão dos transgênicos “é uma atividade combinada com o uso intensivo de agrotóxicos” e que o Brasil “é um dos maiores consumidores de transgênicos e agrotóxicos do mundo”.

No Senado, o Projeto de Decreto Legislativo 90/2007, de autoria da senadora Kátia Abreu (PMDB-TO), tem o objetivo de acabar com a rotulagem obrigatória para os produtos alimentícios, tanto para seres humanos quanto para animais, que contenham em sua composição transgênicos em quantidade superior a 1% de seu volume total. Já rejeitado pelas comissões de Agricultura e Reforma Agrária e de Meio Ambiente do Senado, o projeto segue vivo por pressão da bancada ruralista na casa. Com teor semelhante, o PL 4.148/2008, de autoria do deputado Luís Carlos Heinze (PP-RS), e o PL 5.575/2009, de autoria de Cândido Vaccarezza (PT-SP) também tramitam na Câmara dos Deputados: “Se aprovados, esses projetos acabarão com o direito do consumidor à informação sobre aquilo que está consumindo”, diz o Idec.