Mílton de Arruda Martins: “Elitização brutal” ajudou a concentrar médicos
por Conceição Lemes – Viomundo
Hecatombe, com “feridos” dos dois lados.
Eis no que se transformou a questão da falta de médicos no Brasil, desde que, em 6 de maio, o ministro das Relações Exteriores, Antonio Patriota, revelou que o governo brasileiro negociava um acordo para trazer 6 mil cubanos.
Por razões principalmente ideológicas, mídia tradicional, partidos de oposição e entidades médicas a atacaram ferozmente.
Florentino Cardoso, presidente da Associação Médica Brasileira (AMB), “destacou-se”: “O Brasil quer trazer a escória”.
Preconceito, xenofobia, falta de honestidade intelectual. Entre os 201 cursos de medicina existentes atualmente no Brasil (57,9% privados), há os que deixam a desejar, formando médicos de má qualidade.
Cuba tem 22 faculdades de medicina. Em 2008, possuía 37 mil profissionais de saúde trabalhando em 70 países.
“Embora Cuba tenha recursos econômicos limitados, seu sistema de saúde resolveu alguns problemas que o nosso [dos Estados Unidos] ainda nem enfrentou”, avaliam dois médicos norte-americanos que lá estiveram, em artigo publicado em janeiro deste ano, numa das revistas médicas mais conceituadas do planeta, o The New England Journal of Medicine.
Apesar disso, lentamente, o recuo do Brasil em relação médicos cubanos foi se dando.
Em 14 de maio, o ministro da Saúde, Alexandre Padilha, informou que o governo brasileiro desejava atrair médicos da Espanha e Portugal para trabalhar em hospitais localizados em regiões carentes no Brasil.
O ministro esqueceu-se combinar com “os russos”. Anunciou a estratégia sem ter tido, ao menos, a delicadeza, de conversar antes com os governos e as entidades médicas de Portugal e Espanha. Indignado, o presidente de uma instituição portuguesa reagiu: “Quem disse que nós vamos!”
Em 21 de maio, Padilha disse que não traria médicos da Elam (Escola Latino-Americana de Medicina), de Cuba.
Por má-fé, a imprensa transformou Elam em Irã e descartou totalmente a vinda dos cubanos. A restrição expressa era apenas à Elam, cujo curso de medicina dura quatro anos, o do Brasil, seis.
Em 5 de junho, com o clima esquentando, o ministro, em encontro com entidades médicas, jogou o imbróglio em costa alheia: “Este debate (sobre a ‘importação de médicos’) foi antecipado inadvertidamente pelo ministro das Relações Exteriores, Antônio Patriota, ao falar sobre acordo para a vinda de 6 mil médicos cubanos ao Brasil”.
Patriota teria falado sem a anuência da presidenta Dilma Rousseff, que, em 2012, em visita a Cuba discutiu o assunto? Padilha teria levado uma bola nas costas de Patriota?
Ao se confrontar com esses dados (aqui e aqui), é difícil crer.
O fato é que, com as passeatas de junho, a falta de médicos, prejudicando a assistência à saúde, ganhou as ruas.
Em resposta, em 9 de julho, a presidente Dilma lançou o programa Mais Médicos, que prevê, entre outras medidas: criação de 11.400 vagas nos cursos de graduação de medicina; bolsa de R$ 10 mil reais para os médicos que dispuserem a ir para regiões afastadas do País ou para periferias das grandes cidades; e a contratação de médicos estrangeiros, caso as vagas disponíveis não sejam preenchidas.
Estamos em 21 de julho e a queda de braço prossegue, em temperaturas cada vez mais altas.
As entidades médicas, por questões corporativas e de reserva de mercado, continuam batendo na surrada tecla: não há falta de médicos no Brasil, o problema seria a má distribuição. O que não é verdade.
O governo, por sua vez, se atrapalha com decisões atabalhoadas, midiáticas.
Em vez de buscar uma solução efetiva, duradoura, capaz de efetivamente fortalecer o Sistema Único de Saúde (SUS), recorre a uma saída meia-boca. A bolsa de R$ 10 mil para os médicos não tem garantia trabalhista. É precarização do trabalho.
Já a população das áreas mais carentes do País — seja das regiões ou das periferias das grandes cidades — não pode ficar desassistida. De jeito nenhum. Muito menos à mercê de disputas, picuinhas, sabotagens e manipulações.
Não é um Fla-Flu que está em jogo. É assistência à saúde de milhões de brasileiros.
Por isso, fui ouvir uma das pessoas que mais entendem do assunto na atualidade: o médico e cientista Mílton de Arruda Martins, professor titular de Clínica Médica da Faculdade de Medicina da USP.
Mílton já foi presidente da Associação Brasileira de Educação Médica (Abem).
No governo Dilma, foi secretário de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde, no Ministério da Saúde, até 2011.
Mílton é apaixonado por educação médica. Está sempre rodeado de alunos, aos quais dispensa uma paciência infinita, que até irrita os colegas.
Nesta entrevista ao Viomundo, além de fazer um diagnóstico completo da falta de médicos no Brasil, dá várias sugestões às autoridades. Por isso, propositalmente, preferi não destacar nenhum trecho da nossa longa conversa na abertura desta reportagem. Mílton tem a rara capacidade de ver a questão de forma global. Ele aborda aspectos até agora esquecidos. Confira.
Viomundo – No início de maio, o governo divulgou a “importação” de 6 mil médicos cubanos. Depois, o foco passou a ser a vinda dos espanhóis e portugueses. Na semana retrasada, a presidenta Dilma anunciou o Programa Mais Médicos. O que acha dessas propostas?
Mílton de Arruda Martins – O governo tem tomado decisões excessivamente apressadas. Há programas anunciados antes de haver condições mínimas para existirem de fato. Deveriam primeiro ser submetidos à discussão mais ampla, para, aí, então serem adotados ou submetidos ao Congresso Nacional.
Viomundo – Explique, por favor.
Mílton de Arruda Martins – Praticamente todas as pesquisas realizadas mostram que a falta de médicos no Brasil é um problema considerado muito importante para a população. Mas ele é complexo e não será resolvido satisfatoriamente em curto prazo.
Infelizmente, muitos gestores consideram importante propor medidas de efeito que façam a sociedade perceber que estão preocupados com a solução desse e de outros problemas na área de saúde, mesmo sem haver grande segurança quanto à sua eficácia.
Viomundo – Entre as medidas anunciadas pela presidenta está a obrigatoriedade de os alunos de universidades públicas fazerem mais dois anos de faculdade, trabalhando no SUS. As entidades médicas foram consultadas?
Mílton de Arruda Martins — Não houve, por parte do governo, consulta, por exemplo, à Associação Brasileira de Educação Médica (Abem) e ao Conselho Federal de Medicina (CFM), que têm a responsabilidade legal de controlar o exercício da medicina.
Viomundo – O que acha dessa medida?
Mílton de Arruda Martins – A formação dos médicos passaria de seis para oito anos, a partir de 2015, com dois anos obrigatórios em serviços da rede pública. O nosso curso, com duração de oito anos, passaria a ser um dos mais longos do planeta. Estaremos na contramão do mundo, que debate a diminuição do tempo dos cursos de medicina. A União Europeia, por exemplo, discute reduzir para cinco anos.
Viomundo – Por quê?
Mílton de Arruda Martins – As evidências demonstram que, para a formação do médico, é mais eficiente aumentar a duração da Residência Médica do que a do curso de graduação, que dá a formação básica. A Residência Médica é a melhor forma de especialização após a conclusão do curso médico.
Viomundo – Voltando aos dois anos adicionais.
Mílton de Arruda Martins – A justificativa principal do governo é a necessidade de aperfeiçoar a formação geral e possibilitar experiência maior no Sistema Único de Saúde (SUS).
É inegável que o ensino de graduação precisa ser aprimorado em todo o Brasil. Mas é inegável também que hoje em dia, geralmente desde o primeiro ano do curso médico, os estudantes têm maior contato com os pacientes, a comunidade e o SUS. Isso acontece em quase todos os cursos, principalmente após a promulgação das Diretrizes Curriculares, em 2011.
A formação geral de um médico, com competência técnica, humanística, ética e responsabilidade social deve ser o objetivo dos seis anos do curso médico. E, aí, todos os esforços devem ser feitos, principalmente pelas escolas médicas, para aperfeiçoar essa formação.
Viomundo – Não tem sentido, então, prolongar em dois anos?
Mílton de Arruda Martins — Definitivamente, não é caminho para corrigir eventuais deficiências.
Viomundo – A proposta dos dois anos a mais poderia ser uma forma de implantar o serviço civil (social) obrigatório para os médicos formados em faculdades públicas?
Mílton de Arruda Martins – É uma possibilidade. O serviço civil (ou social) é uma discussão que deve envolver toda a sociedade e todas as profissões.
Na minha opinião, não só os médicos têm que conhecer a nossa realidade e devolver à sociedade parte do que a sociedade investiu em sua formação.
A discussão de um eventual serviço social voluntário (ou obrigatório) tem que envolver engenheiros, agrônomos, médicos, enfermeiros, dentistas, advogados, psicólogos, farmacêuticos, entre outros. Eles poderiam passar um ano em áreas de vulnerabilidade social, com supervisão de suas universidades e recebendo uma bolsa. Trata-se de um projeto para o ensino superior em geral e não apenas para os cursos de medicina.
Viomundo – Qual a solução mais adequada para formação de médicos de qualidade para toda a população brasileira?
Mílton de Arruda Martins – Muitos professores de medicina no Brasil consideram, como eu, que é manter o curso com seis anos de duração e oferecer vagas de Residência Médica para todos os que se formam. Quando o país conseguir oferecer vagas para todos, a Residência Médica passaria a ser obrigatória para o exercício profissional. E a distribuição das vagas nas diferentes especialidades (Medicina de Família, Pediatria, Psiquiatria, Dermatologia, Cirurgia Vascular, Urologia, Anestesiologia, por exemplo) seria definida em função das necessidades sociais e regionais.
Importante: os recursos que serão gastos para custear os dois anos adicionais de graduação são suficientes para esse projeto de oferecer Residência Médica de boa qualidade para todos os formados em medicina.
Viomundo – Não há saúde sem médicos, mas também não há saúde só com médicos. Considerando-se que o governo quer assegurar atendimento adequado à população, não seria necessário pensar nos profissionais de saúde como um todo e não apenas nos médicos, como está acontecendo?
Mílton de Arruda Martins – Com certeza. Para boa assistência à saúde, desde a atenção básica à assistência hospitalar, é preciso trabalho em equipe, na qual o médico é fundamental mas não o único profissional necessário. Além disso, há necessidade de essenciais instalações adequadas, equipamentos, materiais e condições de trabalho.
Viomundo – Quantos médicos seriam necessários para o Brasil?
Mílton de Arruda Martins – Existem visões do SUS em disputa. E as propostas para o número de médicos, enfermeiros, dentistas e demais profissionais de saúde e de como vai ser o trabalho desses profissionais, dependem de que SUS se quer.
Existem muitas pessoas no Brasil que defendem que o SUS assuma uma característica parecida com a do projeto do presidente Barack Obama, dos EUA. Ou seja, que não exista um SUS propriamente dito, mas que o Estado pague um seguro saúde para cada cidadão.
E existem muitas outras pessoas, como eu, que querem um SUS implantado como foi previsto na Constituição de 1988. Um sistema de saúde gerido, regulado e organizado pelo Estado.
Dependendo de como o sistema de saúde é estruturado, o número de médicos necessários será diferente.
Agora, independentemente de qual será o futuro do Sistema Único de Saúde no Brasil, existe uma questão muito concreta: a falta de médicos.
Viomundo – Mas quantos médicos seriam necessários?
Mílton de Arruda Martins — Infelizmente, ninguém tem condições de dizer isso no momento.
O número de médicos por 1.000 habitantes é um índice que permite comparações, mas elas são muito inadequadas.
Um sistema de saúde planejado e baseado no médico geral, como o do Canadá e o da Inglaterra, precisa de menos médicos por 1.000 habitantes do que um sistema em que o acesso a um número enorme de especialistas é muito fácil, como o americano.
Um sistema de saúde em que o trabalho é dividido de forma mais intensa com outros profissionais de saúde, precisa de menos médicos por 1.000 habitantes.
Já um sistema centrado no médico, que praticamente faz tudo, como o cubano, precisa de mais médicos por 1.000 habitantes.
Portanto, a forma como o sistema de saúde e o trabalho do médico é organizada determina o número de médicos que um país vai precisar.
No caso do Brasil, eu consigo dizer que faltam médicos e eles estão inadequadamente distribuídos. Mas eu não consigo dizer, o que é muito ruim para o País, quantos médicos o Brasil deveria ter.
Viomundo – Por quê?
Mílton de Arruda Martins — Porque qualquer política de planejamento tem de levar em conta o futuro.
Daqui a 30 anos nós queremos chegar a quantos médicos por 1.000 habitantes?
Esse número vai depender de que sistema de saúde existirá ou que sistema nós desejamos e trabalhamos para construir. Por isso, eu comecei dizendo que existem visões diferentes de sistema de saúde em disputa.
Essa projeção também é difícil de ser feita porque o sistema de saúde que teremos daqui a 20 ou 30 anos vai depender das disputas políticas e das visões que serão vencedoras ou perdedoras em futuras eleições. Consequentemente, é uma previsão difícil de ser feita.
Viomundo – As entidades médicas insistem que não faltam médicos, há apenas má distribuição. Mas o senhor há muitos anos diz que faltam médicos e há distribuição inadequada.
Mílton de Arruda Martins – Quanto à falta de médicos, eu diria que realmente não há consenso entre as entidades médicas.
Eu, porém, não tenho a menor dúvida de que faltam médicos. A posição do Brasil é sempre desfavorável na comparação com países das Américas e da Europa, se olharmos o número de médicos por 1.000 habitantes.
Atualmente, temos em torno de 1,8 por 1.000 habitantes. Essa relação é muito inferior à média das Américas, que, em 2011, era 2,25 médicos por 1.000 habitantes, segundo estatísticas da Organização Mundial de Saúde (OMS). E muito inferior à média da Europa, que era 3,3 médicos por 1.000 habitantes.
Segundo a estatística de 2011 da OMS, o Brasil tinha 1,72 médicos por 1.000 habitantes. Em 2011, havia mais de 70 países com número de médicos por 1.000 habitantes superior ao brasileiro.
Viomundo – Em números absolutos quantos médicos o Brasil tem?
Mílton de Arruda Martins – Em números absolutos temos muitos médicos. Em atividade, em torno de 370 mil. Mas se dividirmos esse número pela população – o Brasil tem a quinta população do mundo; só perde para Índia, China, Estados Unidos e Indonésia – o quociente por habitantes cai lá para baixo. Então, faltam médicos no Brasil. Isso eu tenho certeza.
Agora, existe outro problema e sobre o qual todos concordam: no Brasil, os médicos estão pessimamente distribuídos.
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Viomundo – A distribuição inadequada agrava a falta de médicos?
Mílton de Arruda Martins – Com certeza. Existem menos médicos por 1.000 habitantes nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste do que na Sudeste e Sul.
E existe uma diferença entre cidades maiores e menores. Os médicos estão concentrados nas cidades maiores. Dentro das cidades maiores, concentram-se nas regiões centrais e faltam em regiões periféricas. Em São Paulo, por exemplo, faltam médicos nas regiões periféricas da cidade, apesar do número de médicos por 1.000 habitantes ser alto.
Não é só isso. Além da distribuição inadequada por região e dentro da região, existe diferença na saúde suplementar e na assistência pública. O cidadão com convênio médico ou seguro saúde tem acesso a mais médicos por 1.000 habitantes do que o usuário direto do sistema público. Pesquisa recente, realizada pelo Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo, sugeriu que essa diferença pode chegar a 4 vezes.
Viomundo – Quais os fatores determinantes para a má distribuição dos médicos?
Mílton de Arruda Martins — Estudos internacionais mostram que salário é fator muito importante. No Brasil, também.
Mas não é o único. Muitas vezes nem é o principal. Existem regiões na periferia de São Paulo em que se oferece R$ 16 a 20 mil reais para um médico, mas as condições de segurança são tão precárias que não se consegue contratar um por muito tempo. O médico prefere trabalhar por salário menor numa região mais segura.
As condições de trabalho são outro fator que muitas vezes acaba sendo mais importante do que o salário. A falta de estrutura mínima para o trabalho é um fator poderoso que dificulta a presença de médicos em algumas áreas, inclusive em regiões com muitos médicos.
Não existe médico sem uma estrutura de saúde junto. Não é que o médico não foi treinado para trabalhar com poucos recursos. É que a medicina moderna exige recursos.
Existe uma série de doenças que não podem ser diagnosticadas e tratadas adequadamente sem exames de laboratório, mesmo na atenção básica. Se o médico não tem acesso a esses recursos, ele se sente profundamente desmotivado, tem a sensação de que não está fazendo a medicina que os seus pacientes merecem.
Viomundo – Mas hoje em dia os médicos não estão excessivamente dependentes dos exames, relegando a avaliação clínica a plano secundário? Uma boa avaliação clínica por si só não é suficiente para o diagnóstico de uma porção de doenças?
Mílton de Arruda Martins – Com certeza. Um médico com boa formação clínica e boa experiência pode resolver muitos problemas sem a necessidade de muitos exames de laboratório, mas muitas vezes ele necessita desses exames. É impossível, por exemplo, tratar um diabético da melhor forma conhecida sem o acesso a vários exames de laboratório e, muitas vezes, a vários especialistas.
Viomundo – Que outro fator é importante?
Mílton de Arruda Martins – Estabilidade no emprego. Aí, existe a questão ligada à chamada carreira profissional.
A existência de uma carreira que dê estabilidade, salário adequado, condições de progresso e de atualização permanente é um fator que atrairia muitos médicos.
Frequentemente, se dá o exemplo de carreiras como a de juiz e a do promotor. Eu acho essa comparação muito adequada.
Outro fator são as condições de vida que o médico tem.
Existem locais em que o médico vai trabalhar por muito tempo, mas talvez ele não pretenda trabalhar a vida toda. Então, se tiver uma carreira em que tenha possibilidade de progredir, ou, por exemplo, que possa mudar para uma cidade onde exista escola que ache adequada, quando os filhos estiverem em idade escolar, também é um fator que atrai.
Há mais um fator que eu me esquecendo: a Residência Médica. Existem estudos que mostram que, além daqueles fatores que mencionei acima, a Residência Médica é um fator importante de fixação do profissional. O médico tende mais a ficar no Estado onde ele fez a Residência Médica do que no Estado onde fez o curso de graduação em medicina.
Viomundo – Havendo condições de trabalho, carreira profissional e salário seria possível distribuir melhor os médicos no país?
Mílton de Arruda Martins – Com certeza. Com essas medidas será dado um passo importantíssimo para melhorar o acesso da população à saúde. Infelizmente, em alguns municípios dos estados da Região Norte, por exemplo, talvez tenhamos que pensar em uma estrutura de atenção à saúde que conte com médicos que permaneçam temporariamente, mas que não se fixem. Nesta discussão, aliás, as pessoas confundem muito provimento e fixação.
Viomundo – Qual a diferença entre provimento e fixação?
Mílton de Arruda Martins — O ideal para uma população seria que o médico fosse para determinada localidade e ficasse lá durante anos, que estabelecesse vínculo com a comunidade, enfim, que se fixasse na região… Mas é muito difícil imaginar que o médico vá se fixar em regiões muito pouco acessíveis.
Então, existem regiões em que haverá rodízio de médicos, mesmo havendo a carreira. A gente conseguirá provê-las de médicos, eles ficarão alguns meses ou anos e serão substituídos por outros médicos. Ou haverá rodízio de médicos, como existe nos profissionais que trabalham nas plataformas de petróleo.
É a estratégia que se discute muito para a região Norte do Brasil. Em algumas áreas, o caminho será o de provimento e não de fixação dos médicos.
Viomundo – É racional?
Mílton de Arruda Martins – Não é nenhum absurdo. A gente pode comparar isso com dois países considerados de Primeiro Mundo e que têm problemas parecidos com o Brasil nessa área: Canadá e Austrália.
A região central da Austrália é um deserto de terra e areia. A região norte do Canadá, um deserto de gelo. São duas áreas em que os respectivos governos têm grande dificuldade em fixar médicos e outros profissionais de saúde, como os dentistas. Muitas vezes eles acabam trabalhando com médicos que ficam nesses locais durante um período e depois são substituídos.
Mas essa estratégia é para situações extremas. Na maior parte das regiões e das cidades brasileiras, carreira, condições de trabalho e salário adequados seriam capazes de fixar o médico.
Agora, quando eu falo em carreira de médico, pressupõe que ela tem de prever não apenas progressão, mas também a oportunidade e a obrigatoriedade da atualização permanente. A educação permanente é fundamental, se não o médico fica desatualizado.
Viomundo – Se fala muito na carreira na implantação da carreira do médico no SUS, como já existe para promotores e juízes. Por que isso não é levado adiante?
Mílton de Arruda Martins – Eu defendo a existência de carreira no SUS não apenas para os médicos, mas para todos os profissionais que atuam no SUS. Seria uma solução definitiva. Mas muitos gestores resistem a esse tipo de solução.
Viomundo — Por quê?
Mílton de Arruda Martins – O principal obstáculo é financeiro.
Muita gente não sabe, mas a implantação progressiva do Sistema Único de Saúde implica numa descentralização importante quanto à responsabilidade da assistência.
A maior responsabilidade direta fica com as prefeituras. Os estados também têm uma responsabilidade importante, principalmente nas ações de alta complexidade. A responsabilidade direta da assistência é menor para o poder central, o governo federal.
Só que não houve distribuição proporcional de recursos. As prefeituras estão falidas em relação aos recursos para a saúde, os estados menos. Os recursos, ainda que insuficientes, se concentram no governo federal.
Houve, portanto, uma descentralização maciça da assistência e uma descentralização menor dos recursos.
Hoje, a esmagadora maioria dos profissionais de saúde é contratada pelas prefeituras. Em segundo lugar, pelos estados, em terceiro, pelo governo federal. Só que a maioria dos recursos está no governo federal.
Existem ainda outros obstáculos. A legislação não permite que um profissional ganhe mais do que o prefeito. Só que nenhum médico vai trabalhar por salário inferior ao que o prefeito ganha na maior parte dos municípios brasileiros.
Resultado: os médicos e demais profissionais de saúde acabam sendo contratados com vínculos precários. E esse é mais um fator que vai contra a ideia de uma carreira profissional na área de saúde.
Viomundo – Como os médicos são contratados então?
Mílton de Arruda Martins — Geralmente como pessoa jurídica, portanto não têm direitos trabalhistas. Às vezes o vínculo ainda é mais precário: os médicos são contratados por alguns meses por serviços prestados.
Viomundo — A maior parte dos médicos do SUS estaria nesse sistema de vínculo precário?
Mílton de Arruda Martins — Eu não sei, mas arriscaria a dizer que a maior parte dos médicos que trabalha no Programa de Saúde da Família de cidades menores está nessa situação. Inclusive por causa da lei de responsabilidade fiscal.
Aqui, existe outra coisa. A falta de médicos coloca a população contra as autoridades locais. Então, muitas vezes existe uma busca desesperada por parte dos gestores locais de conseguir um médico, mesmo que fique só durante certo tempo.
Viomundo – A presidenta Dilma prevê a criação de 11.400 vagas em cursos de medicina até 2017. Isso resolveria o problema da falta de médicos no País?
Mílton de Arruda Martins – Acho isso desnecessário por já ter havido enorme expansão dos cursos de medicina nos últimos tempos. No final do ano passado, já havia 197 cursos de medicina em funcionamento. Este ano já são 201. E o número de estudantes de medicina pulou de mais ou menos de 48 mil no meio da década de 1990 para mais de 110 mil hoje.
Como existem cerca de 370 mil médicos em atividade, o número de estudantes de medicina hoje no Brasil equivale a 1/3 do número de médicos em atividade.
Portanto, qualquer projeção que se faça do número de médicos por habitante no Brasil, este número vai aumentar com as vagas já existentes em cursos de medicina.
Não é só isso. Como não houve planejamento adequado, o rápido aumento dos cursos têm dois problemas sérios.
O primeiro é a garantia da qualidade. Não dá para separar a discussão sobre o número de médicos da discussão da qualidade. Garantir a qualidade dos cursos de medicina que já abriram é um desafio importante.
O segundo é a preparação de professores. Os docentes preparados hoje no Brasil são insuficientes para ocupar os postos de trabalho existentes atualmente. E sem professores capacitados, não teremos condições de formar médicos qualificados.
Viomundo – Ou seja, não dá para separar número de qualidade?
Mílton de Arruda Martins – De modo algum!!! Formar médicos não é uma solução em curto prazo. Infelizmente demora mais do que construir uma linha de metrô.
Viomundo – Explique melhor.
Mílton de Arruda Martins – Vamos supor que se decida abrir agora um curso de medicina com 100 vagas. É preciso ser autorizado e fazer o vestibular. Mesmo que em um ano tenha todas as condições de funcionamento, só vai começar a formar médicos para o sistema de saúde sete anos depois. Assim, se ele tiver 100 vagas, vai formar 100 médicos no primeiro ano. Outros 100 no segundo.
De forma que um curso de medicina que abre hoje com 100 vagas, ele só vai contribuir com 300 médicos nos próximos dez anos. Então qualquer discurso que diga que, em 2030, por exemplo, vai ser corrigido o déficit de médicos no Brasil com o aumento no número de escolas é demagógico.
Viomundo – Por quê?
Mílton de Arruda Martins – Porque essa solução é de longo prazo. Então, se a gente quer que os médicos sejam de qualidade, o déficit só vai ser corrigido ao longo das próximas décadas e não ao longo dos próximos anos.
Aqui, existe outro problema: a forma como as autorizações para abertura dos cursos de medicina foram dadas.
Até 1966, ou seja, começo da ditadura civil militar, existiam no Brasil 42 cursos de medicina. Desses, só 16,7% eram privados.
De 1967 a 1994, período mais fechado da ditadura até o final do governo Itamar Franco, foram abertos 41 cursos. Desses 41, 63,4% privados.
Aí, veio o governo Fernando Henrique. De 1995 a 2002, foram abertos mais 42 cursos de medicina, sendo 61,4% privados.
No governo Lula, 2003 a 2010, foram abertos 52; 76,9% privados. Nos primeiros dois anos o governo Dilma, abriram-se 18 cursos de medicina, 77,8% privados.
Então a expansão dos cursos de medicina, principalmente a partir da autorização de cursos privados, é uma prática no Brasil e que não mudou substancialmente, independentemente de quem estava no governo.
Qual foi o resultado disso? Até 1966, só 16,7% eram privados. Hoje, 57,9% são privados.
Sabe qual a mensalidade média desses cursos? R$ 4 mil reais!
Em dezembro de 2012, segundo dados do site Escolas Médicas, a mensalidade mínima era R$ 2.800 e a máxima R$ 6.800.
E como a maioria dos estudantes de medicina não estuda na cidade onde mora, eles gastam no mínimo mais R$ 2 mil para custear moradia e material para estudo. Então, na maior parte dos cursos de medicina no Brasil só entram estudantes cuja família pode pagar, pelo menos, R$ 6 mil mensais.
Conclusão: a expansão dos cursos de medicina se fez à custa de uma elitização brutal do acesso. E isso pode ser também um fator poderoso para concentrar os médicos em determinadas regiões e não motivá-los a ir trabalhar em outras.
Viomundo – E os programas do governo federal?
Mílton de Arruda Martins – Realmente, existem programas importantes do governo federal para aumentar o acesso aos cursos privados no ensino superior. São o ProUni, que dá bolsas, e o Fies, que é o financiamento estudantil. Só que se a gente somar o número de estudantes de medicina que está no ProUni ou tem Fies, não chega a 20%.
Portanto, a gente continua com 80% dos estudantes de medicina de escolas privadas que vem de famílias que podem pagar, em média, R$ 6 mil por mês.
De qualquer forma, de um lado, houve grande aumento no número de estudantes, mas há o problema da qualidade que precisa ser garantida. De outro, como existe falta de médicos no Brasil e a correção dessa insuficiência não vai ser imediata, aí surgem as tentações de buscar médicos em outros países.
Viomundo – O acha de se trazer médicos de fora?
Mílton de Arruda Martins – Desde que passem por uma avaliação séria quanto à sua competência profissional, como acontece na Europa, Estados Unidos, Canadá, pode ser uma solução para áreas onde não é possível contratar médicos brasileiros.
Viomundo – E os médicos de Cuba, que foram sendo rifados pelo próprio governo devido à pressão da mídia, entidades médicas e partidos de oposição?
Mílton de Arruda Martins — Em relação aos médicos cubanos a discussão é muito ideológica. Existem os pró-Cuba e os contra-Cuba.
Eu considero que médicos formados em outros países, incluindo Cuba, que forem submetidos a um processo sério de avaliação, incluindo conhecimento da nossa língua e do SUS e de sua competência médica, podem exercer sua profissão no Brasil em áreas onde há carência de médicos. Agora, o sistema de saúde cubano é muito diferente do brasileiro. E os médicos cubanos, assim como de outros países, têm cultura e língua diferentes. Eles precisariam passar por um aprendizado da cultura e da língua dos brasileiros.
Já existe um processo de avaliação de médicos formados em outros países conhecido como Revalida, organizado pelo Ministério da Educação (MEC) e que conta com professores de medicina com muita experiência na área. Por isso, defendemos que médicos formados em outros países deveriam ser avaliados pelo Revalida.
Viomundo – Trazer médicos de fora é a melhor solução para suprir a falta de médicos, já que a população não pode ficar desassistida?
Mílton de Arruda Martins – Acho que não é o melhor caminho.
Viomundo – Por quê?
Mílton de Arruda Martins – É preciso um tempo para o médico estrangeiro se adaptar, mesmo que seja português.
Vamos supor um colombiano, argentino, uruguaio ou cubano. Mesmo sendo muito competente, ele terá dificuldades até se adaptar. Demora certo tempo – eu diria alguns meses, até anos – para ele estar totalmente adaptado à nossa cultura e língua.
Com base na minha experiência de quase 30 anos como professor, lidando inclusive com estudantes de outros países, eu acho que, no começo, o ideal é que ele trabalhasse numa equipe onde fosse mais protegido.
Um médico que está aprendendo a falar português e não conhece a nossa cultura, mesmo que seja bastante competente, não é o médico ideal para ir trabalhar sozinho numa comunidade remota. O Brasil não tem dialetos, mas há muitas expressões que as pessoas usam para descrever doenças, sintomas. Então, há necessidade de uma adaptação.
Viomundo – Quanto tempo?
Mílton de Arruda Martins — Eu arriscaria a dizer que, no primeiro ano de atuação, o ideal é que esse médico não trabalhasse sozinho, que ele trabalhasse próximo de alguém a quem pudesse recorrer para tirar uma dúvida, por exemplo.
Viomundo – Os médicos de outros países têm de passar pelo Revalida. Agora, a gente sabe que no Brasil há faculdades de medicina que deixam a desejar, formando médicos de qualidade inadequada, deficiente. Os médicos brasileiros também não deveriam passar por avaliação já que os pacientes também correm risco nas mãos daqueles incapazes?
Mílton de Arruda Martins — Com certeza. Mas, nesse ponto, uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa.
Se os cursos de medicina estão sendo mal avaliados, formando médicos inadequados, existe uma responsabilidade enorme dos cursos e dos responsáveis pela avaliação. Então, a avaliação dos estudantes de medicina ao longo do curso tem que melhorar.
Viomundo – Os estudantes brasileiros deveriam fazer uma prova no final do curso?
Mílton de Arruda Martins — Eu não sou a favor de um exame no final do curso. Acho uma solução do século XX para um problema do século XXI. A avaliação deve ter características mais modernas, ser em múltiplos momentos, com oportunidade de recuperação teórica e prática.
O gestor de um curso de medicina tem seis anos para avaliar o estudante. Acho irresponsabilidade ou incompetência se ele não usar os seis anos para avaliar, reavaliar, dar feedback, propor recuperação e eventualmente não deixar este indivíduo se tornar médico.
Mas defendo, sim, que no País existam exames organizados externamente aos cursos, para os estudantes de medicina. Sou daqueles que acreditam que poderia ser uma série de exames durante o curso. É uma alternativa, claro, mais cara, mas que está muito mais no interesse da sociedade.
Viomundo – Como seria essa avaliação?
Mílton de Arruda Martins – Por exemplo, avaliar esse estudante três vezes durante o curso, sendo que a última avaliação poderia ser também prática.
E se o estudante não passar, vai repetindo os exames até ele ser suficiente. E o curso de medicina é responsável por ele. Porque se o exame ocorrer depois de receber o diploma, o problema deixa de ser do curso, passa a ser só do aluno. O problema tem de ser dividido entre o estudante e o curso. Por isso, tem de ser antes do diploma.
perguntar quanto tempo mais essa máquina pode funcionar dessa maneira, antes que exploda.
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Viomundo – O que faria para reduzir a falta de médicos, já que considera que trazê-los do exterior não seria o melhor caminho?
Mílton de Arruda Martins – Essa é uma questão prioritária. Daria para redistribuir bastante os médicos existentes se houvesse condições de trabalho, carreira, remuneração adequada e se os médicos não se sentissem isolados onde fossem.
Eu estabeleceria algumas regiões prioritárias e implantaria a carreira de médico. O Brasil é um país muito diverso. Não pode ter uma solução única.
Eu tenderia a propor carreiras estaduais, porque o Brasil é muito diverso. É diferente uma carreira para o Amazonas de uma para São Paulo. Eu começaria pelos médicos da Atenção Básica.
Eu pensaria em carreiras estaduais que tivessem um financiamento bipartite ou tripartite. Como o grosso do dinheiro está no Ministério da Saúde, é necessário que houvesse um financiamento parcialmente federal.
Por exemplo, que houvesse um fundo que pudesse ser federal, estadual e municipal, que financiasse essa carreira. Mas que essa carreira fosse de base estadual.
Municípios grandes, como São Paulo, Belo Horizonte e Rio de Janeiro, ou regiões metropolitanas poderiam ter as próprias carreiras.
Viomundo – Há municípios que já têm a carreira para médico no serviço público.
Mílton de Arruda Martins – Há, sim, e em alguns lugares a carreira é até bem estruturada, mas como o salário é muito baixo, acaba não valendo a pena para o médico ficar muito tempo na carreira.
Tem que haver carreiras para o médico no Sistema Único de Saúde, mas tem de haver salário compatível com a formação do médico. A gente tem de ser realista nesse sentido.
Acho que está na hora de o Brasil começar a experimentar a implantação de carreiras para os profissionais de saúde, se quiser ter uma solução definitiva para a gestão de recursos humanos no sistema público de saúde.
Viomundo – O Ministério da Saúde diz que os médicos que iriam para as regiões remotas teriam à disposição recursos à distância. Isso resolve?
Mílton de Arruda Martins — Não resolve, mas ajuda bastante. Existem regiões do país onde o acesso é muito difícil. Nessa condição, o uso da internet, com programas como o Telessaúde, é muito importante.
Viomundo – Em programas como o PROVAB, médicos recém-formados, em vez de serem contratados, recebem uma bolsa do Ministério da Saúde? A bolsa não é uma forma de precarização do trabalho?
Mílton de Arruda Martins – Do meu ponto de vista, é um vínculo precário. Então, é um médico com vínculo precário sendo colocado pelo Ministério da Saúde em locais de difícil acesso, de difícil provimento.
Viomundo – Apostar na estratégia de trazer profissionais de fora para resolver a falta de médicos no Brasil pode ser então uma bomba de efeito retardado?
Mílton de Arruda Martins — Pode, porque a gente não sabe o que pode acontecer sem testar antes. Como professor universitário e cientista, eu acho que problemas complexos exigem soluções complexas. Não existe solução simples para um problema complexo. E soluções complexas têm que ser testadas. A priori, é difícil saber quantos vão ficar pouco tempo, quantos vão se fixar.
Viomundo – Então o Ministério da Saúde deveria testar antes com poucos médicos, para ver o que acontece?
Mílton de Arruda Martins — O ideal seria fazer projetos piloto, depois avaliar os resultados, para diminuir o risco de a estratégia fracassar.