A arte para socializar a loucura
Luiz Calcagno, do Correio Braziliense
Projeto artístico abre as portas dos manicômios a fim de que os pacientes possam mostrar a produção própria àqueles que estão do lado de fora. E tenta mudar preconceitos da sociedade em relação às patologias mentais
A loucura como solução para a sociedade é a proposta que a artista cênica Ingrid Kaline Souza, 24 anos, trouxe até os brasilienses com o projeto Doida de pedra. Objeto de mestrado da atriz, a iniciativa tem como finalidade abrir as portas de instituições psiquiátricas a fim de que as pessoas presenciem a produção cultural e artística de pacientes. Por meio da expressão corporal e a sensação de liberdade, portadores de transtornos mentais quebram o estigma da loucura como uma forma de isolamento social. Em contrapartida, a plateia “traz” a loucura para dentro de si, questiona os padrões de vida e tem a chance de mudar o ponto de vista sobre a parcela da população que sofre das patologias. As angústias e a necessidade de extravasar, comuns a todos, são incentivadas como reflexo natural da alteração mental de cada um.
Kaline vê o uso de cigarro, álcool e drogas como a forma com que a maioria das pessoas escolheu para fugir ou lidar com “as brechas da normalidade”. Na visão da artista, rotular o que é normal torna as pessoas menos livres. A loucura, então, estaria à margem da definição de “normal”, e é essencial lidar com ela para garantir a saúde mental. “A loucura e a razão têm que dialogar. Só assim haverá saúde mental. Não é todo mundo que consegue reconhecer um louco como um igual e também se reconhecer naquela pessoa. Para isso, temos que nos permitir sair do convencional. Fazemos isso com a arte, em público, e, então, há um ‘contágio’. O Doida de pedra é um trabalho de socialização. Nosso método é a expressão corporal e o barulho”, explica.
O filósofo húngaro Peter Pál Pelbart e a psiquiatra brasileira Nise da Silveira (leia Para saber mais) estão entre as principais influências do trabalho da artista. O primeiro dizia que as pessoas devem ter o “direito à desrazão”, de libertar a própria subjetividade das amarras do que é considerado verdade pela maioria. Já Nise, que se tornou internacionalmente reconhecida no campo da psiquiatria, usava a arte e o afeto para tratar os pacientes. “Ela (Nise), certa vez, perguntou a um dos pacientes o que era loucura. Ele disse que é quando o coração fica muito cheio e, então, explode. As pessoas têm medo de olhar para esse mistério, para o que está além das fronteiras do que é considerado normal, e sair de lá transformado. Eu quero despertar o interesse das pessoas pela loucura”, conta.
Formada em artes cênicas pela Universidade Federal de Pernambuco, Ingrid Kaline deu início ao Doida de pedra no estado nordestino. Inicialmente, ela lembra que queria ser somente atriz. Em uma viagem a Santa Teresa (RJ), perdida pela cidade, encontrou uma paciente psiquiátrica que procurava por um centro cultural onde exporia trabalhos artísticos. Curiosa, decidiu acompanhar a desconhecida. “Eu vi oficinas, exposições de artesanato, instalações, poesias, um material riquíssimo. Deparei-me com um mundo paralelo e foi revelador”, lembra. “Voltei para Recife com a ideia. Em uma instituição psiquiátrica da cidade, vi um pessoal jogando capoeira. Uni uma coisa a outra e decidi trabalhar com a expressão corporal. O nosso corpo é um parque de diversões muito mais amplo que imaginamos. Temos muitos limites a romper”, afirma.
Loucura normal
Paciente assistida pelo Centro de Assistência Psicossocial (Caps) de Taguatinga, Iris Barbosa participa do Doida de pedra. Ela não entra em detalhes sobre os problemas emocionais e psíquicos que enfrenta. Diz somente que esteve internada no Hospital São Vicente de Paulo (HSVP), em Taguatinga Sul, após sofrer uma crise de estresse muito grande por conta do trabalho e dos estudos. Antes de participar do projeto da artista, sentia-se socialmente isolada e não conseguia esboçar reação para sentimentos e acontecimentos do dia a dia. “O Sol nascia, eu me alimentava e torcia para que a noite chegasse. A Ingrid, com o projeto, foi como um ponto de luz. Mais que iluminar, mostrou que tenho minha própria luz. No Doida de pedra, podemos ser quem somos, então, não há mais loucura”, declara.
Para Iris, a atividade abriu a possibilidade de a sociedade se aproximar dos pacientes psiquiátricos. “Eles passam a nos compreender, pois somos nós mesmos.” Militante antimanicomial do Movimento Pró-Saúde Mental do Distrito Federal, João Vinícius Marques concorda com os princípios do Doida de pedra e com a visão de Iris sobre o projeto da artista cênica. “Toda a história da luta antimanicomial é para abolir os espaços de asilo e isolamento de pacientes psiquiátricos, locais que afastam os doentes da vista das pessoas. O principal objetivo da nossa luta é o direito à convivência. É isso que o projeto traz: abre o hospital psiquiátrico. O lugar da loucura não é o manicômio”, acrescenta.
Em 2013, a Secretaria de Saúde do DF assistiu cerca de 50 mil pacientes nos Caps. No Hospital São Vicente de Paula, foram 23.700 atendimentos. O diretor-geral da unidade, Ricardo Albuquerque Lins elogiou a ação de Kaline. “É um trabalho que desmistifica a loucura como um processo que não tem possibilidade de vivência da sociedade. As pessoas portadoras de problemas mentais podem ser, também, ajudadass de uma forma diferente”, diz.
Indicadores elevados
Segundo números da Organização Mundial da Saúde (OMS), as doenças e os transtornos mentais afetam mais de 400 milhões de pessoas em todo o mundo. Já a Organização das Nações Unidas (ONU) indica que entre 75% e 85% das pessoas que sofrem desses males não têm acesso a tratamento adequado. No Brasil, a estimativa é de que 23 milhões de pessoas sofram dessas patologias, pelo menos cinco milhões em níveis de moderado a grave.
Brasileira à frente de seu tempo
Pioneira da psicologia jungiana no Brasil, a psiquiatra Nise da Silveira lutou para mudar a forma de tratamento a pacientes nos hospitais e manicômios do país. Correspondeu-se com o psicanalista suíço Carl Gustav Jung e teve aulas com uma das principais alunas dele, Marie-Louise von Franz. Inovadora em diversas áreas, Nise foi membro-fundadora da Sociedade Internacional de Expressão Psicopatológica, com sede em Paris, e se mostrou uma profissional à frente do próprio tempo. Foi contra técnicas como o eletrochoque e usou a arte e a afetividade para tratar pessoas com transtornos mentais.
Em uma de suas obras, a especialista explica a importância dos animais, que ela chamava de coterapaeuta, na cura dos enfermos. Nise fundou ainda diversas instituições que revolucionaram o atendimento a portadores de patologias mentais no Brasil. Entre elas, estão o Museu de Imagens do Inconsciente, no Rio de Janeiro (RJ), que preserva trabalhos produzidos por esquizofrênicos, e a Casa das Palmeiras, clínica para reabilitar pacientes de antigas instituições psiquiátricas.