Novo Diretor Ad-hoc do Cebes publica artigo sobre financiamento da Saúde

 

Fonte: Jornal dos Economistas – Edição Janeiro 2012

“A sociedade burguesa se encontra diante de um dilema: ou avanc?o para o socialismo ou recai?da na barba?rie.” Friedrich Engels apud Rosa Luxemburgo (in: A Crise da Social-Democracia – Folheto Junius)

O Plano de Fundo

O dilema socialismo ou barba?rie e? de fundamental importa?ncia para qualquer discussa?o sobre a organizac?a?o do Estado desde o se?culo XIX. O padra?o de produc?a?o, distribuic?a?o, acumulac?a?o e consumo hoje existente nas nac?o?es europeias e americanas do norte na?o e? reproduzi?vel para o conjunto das pessoas do mundo. Nos dias de hoje, ja? se consomem por ano as reservas de uma Terra e meia. Se os sete bilho?es de habitantes da Terra adotassem o padra?o de consumo dos Estados Unidos, seriam imediata- mente necessa?rias quatro Terras e meia! Vivenciamos uma crise ecolo?gica sem precedentes e, como dizia Marx, a “produc?a?o capitalista so? se desenvolve exaurindo as fontes originais de toda riqueza: a terra e o trabalhador”. Para evitar a barba?rie, que, alia?s, ja? se abate em va?rias partes do mundo, ha? que se agregar a defesa do planeta como parte indissocia?vel da luta pelo socialismo.

Enquanto perdurou a ameac?a do triunfo comunista com o “sucesso” sovie?tico, o capitalismo europeu construiu estruturas de bem estar social. Este componente poli?tico tambe?m permitiu uma atuac?a?o maior do Estado na economia, sem asconstantes ameac?as dos economistas do mercado. O fracasso sovie?tico fez-se acompanhar da vito?ria do neoliberalismo e das ideias do Estado mi?nimo, e com elas a tentativa de desmonte de qualquer noc?a?o de protec?a?o social.

A utopia da vida eterna

A busca da imortalidade esta? presente na histo?ria da humanidade desde seu alvorecer. Praticamente todas as religio?es do passado e do presente, expressando a perplexidade com a finitude da vida humana, te?m proposto soluc?o?es diversas para o que acontece depois que mor- remos. Rituais ma?gicos e religiosos tambe?m se ocuparam, se ocupam, e certamente se ocupara?o dos modos de prolongar a vida na Terra.

As consideradas cie?ncias, baseadas na raza?o, tambe?m se preocuparam com a vida de- pois da morte. O filo?sofo brita?nico John Gray publicou, em 2011, um livro intitulado A Co-missa?o da Imortalizac?a?o, que tem como subti?tulo “a cie?ncia e a estranha busca de trapacear a morte”, onde visita essa tentativa com humor, concisa?o e abrange?ncia. As cie?ncias tambe?m se ocuparam de conseguir a imortalidade aqui na pro?pria Terra, onde o alvorecer da qui?mica cienti?fica coincidiu com a busca da pedra filosofal e do elixir da longa vida. A Medicina, desde seu nascedouro, aparentemente deixando a busca da imortalidade para outros, sempre tratou de fazer com que a Morte, quando se apresentas- se, adiasse sua visita. Ocorre que ela sempre retornava.

Na?o bastasse o retorno da morte, sua ause?ncia acarretaria problemas drama?ticos, retrata- dos na literatura pelo escritor portugue?s Jose? Saramago, no livro As intermite?ncias da morte, onde narra o sucedido a partir de um dia quando, em Portugal, as pessoas simplesmente param de morrer. Outro escritor portugue?s, Gonc?alo Tavares,publicou Uma viagem a? I?ndia, a? moda de uma epopeia li?rica contempora?nea, onde uma de suas estrofes canta:

“As va?rias gerac?o?es sa?o egoi?stas, sem du?vida. Porque se os dias emperrassem numa gerac?a?o especi?fica – como roldana sem o?leo que na?o avanc?a -, estari?amos diante de uma magni?fica rac?a eterna. O que muito faria contentes uns e incomodaria outros: aqueles que ainda na?o nasceram”.

Tem a durac?a?o da vida um limite? Va?rios demo?grafos te?m se dedicado a analisar a evoluc?a?o da durac?a?o da vida ao longo do tempo. Embora de maneira desigual, a esperanc?a de vida ao nascer tem aumentado, fundamentalmente grac?as a? reduc?a?o da mortalidade na infa?ncia. Robine, demo?grafo france?s, em trabalho sobre a evoluc?a?o secular da mortalidade em adultos, identificou uma idade modal de morte com relativa estabilidade que passa a ser detecta?vel na Sue?cia aos fins do se?culo XVIII, e na Sui?c?a no se?culo XIX, e se situa em tor- no dos 75 anos. O Japa?o, para os anos 1950, evidenciaria o que se- ria o fim da transic?a?o epidemiolo?gica, situando a idade modal em torno dos 80 anos, bastante pro?xima da atual em todos os pai?ses do mundo desenvolvido.

James Fries, me?dico, introduziu, em 1980, a ideia da “Compressa?o da Morbidade”, sugerindo que o aumento da esperanc?a de vida se faria acompanhar de um encurtamento da extensa?o da vida com morbidade. Ele acreditava que as mesmas forc?as que resultaram na diminuic?a?o da mortalidade estariam associadas a uma menor incide?ncia de doenc?as cro?nicas e a um aumento da idade de ini?cio dessas doenc?as. Entretanto, inu?meros estudos desde meados dos anos 70 te?m demonstrado que isso na?o ocorre. Uma pessoa que morre aos 65 anos, por infarto agudo do mioca?rdio, por exemplo, consome bem menos servic?os e produtos de sau?de do que se sobreviver ao infarto e vier a falecer de ca?ncer aos 90 anos.

A reduc?a?o da mortalidade na?o se acompanha necessariamente de uma reduc?a?o da incide?ncia, e aumenta o nu?mero de sobreviventes portadores de problemas de sau?de que estara?o sujeitos a? ocorre?ncia de problemas de sau?de adicionais. Fara? sentido a bus- ca incessante por tecnologias de prolongamento exaustivo de nossas vidas? Como trazer aos dias de hoje aqueles que, como na A?frica subsaariana, mal chegam aos 52 anos? E os bolso?es de misera?veis que ainda vivem entre no?s e em va?rios pai?ses de renda me?dia?

Os gastos em sau?de

O debate sobre o financia- mento da sau?de deve partir, portanto, da premissa de que quanto mais sau?de um povo tem, mais assiste?ncia me?dica ele precisa. Como corola?rio, quanto maior o gasto em sau?de hoje, maior ele sera? amanha?. As medidas preventivas sa?o necessa?rias e boas porque nos permitem viver mais e melhor, na?o porque barateiam os gastos globais do sistema.

Ponto relevante e? o custo dos tratamentos. Quantas pessoas poderiam ser tratadas de diabetes ou hipertensa?o com o que se gasta para tornar via?vel um rece?m-nascido de 450 gramas? Com apenas um quarto dos cerca de 160 milho?es de reais que o Ministe?rio da Sau?de gastou, em 2009, para aliviar os sinto- mas de 4.700 pacientes com artrite reumatoide ou psori?ase com a droga adalimumabe, cujo uso ainda na?o esta? inteiramente consagrado, seriam tratados, e em sua maioria curados, todos os 73.000 casos novos de tuberculose pulmonar identificados naquele ano. Isso ilustra a equivocada noc?a?o de que os recursos existentes para a sau?de sa?o suficientes, mas mal geridos. Escolhas de eficie?ncia podem obrigar a discussa?o de soluc?o?es finais a? moda nazista. Na?o quer dizer que maior eficie?ncia e efica?cia na?o sejam necessa?rias, entretanto os ganhos dessa natureza sa?o marginais.

O Homo ricus

Caca? Diegues publicou uma cro?nica na revista Piaui?, intitulada A Evoluc?a?o das Espe?cies por Selec?a?o Artificial, onde trata do aparecimento, no futuro, do Homo ricus, desenvolvido a partir de uma parcela da populac?a?o que tem acesso a servic?os avanc?adi?ssimos de terapia gene?tica na fronteira tecnolo?gica dissociada dos demais Homo sapiens. Os “lucros com esta se tornaram de tal modo elevados que os laborato?rios deixaram de fabricar os medicamentos convencionais” para os homens comuns. O uso do planeta pelos mais ricos e a na?o construc?a?o de um sistema pu?blico universal de sau?de que fornec?a a? toda a populac?a?o os produtos e ser- vic?os de sau?de mais avanc?ados certamente transformara? a divi- sa?o de classes na divisa?o de espe?cies sugerida por Diegues.

A escolha

Da forma como hoje esta? colocado o debate sobre gastos pu?blicos em sau?de, os gestores pu?blicos sa?o cotidianamente submetidos a escolhas de Sofia, decidindo quem deve vi- ver e quem deve morrer. Toda- via, jamais e? dito claramente para a sociedade que os impostos que deveriam financiar a sau?de, educac?a?o e outros gastos governamentais sa?o na realidade destinados ao sistema financeiro. Os encargos financeiros cor- responderam em 2010 a uma apropriac?a?o de 41,90% de toda a despesa do governo federal. A seguridade social, dentro da qual esta?o inseridos os gastos de sau?de, apropriou-se de 40,08% das despesas (3,71% na Assiste?ncia Social, 31,14% na Previde?ncia Social e 5,22% na Sau?de). Como sabemos, ha? quem chame esses gastos destinados ao sistema financeiro de “bolsa banqueiro”…

Qual seria, enta?o, o cena?rio se na?o for revertida essa lo?gica? Como os recursos destinados a? sau?de sa?o insuficientes para atender a? demanda, teri?amos que construir ca?maras de ga?s para os cidada?os que atingissem uma determinada idade em que o seu custo em sau?de seria excessivo – 75 anos, por exemplo –, a na?o ser para aqueles abasta- dos que fossem capazes de cobrir privadamente seus gastos. Ou ainda, editari?amos um decreto estabelecendo que bebe?s com menos de um quilo, salvo com cobertura privada, seriam deixados para morrer. Na?o demoraria que algue?m propusesse a esterilizac?a?o em massa das camadas mais pobres, chegando-se a? soluc?a?o final para a pobreza: a eliminac?a?o fi?sica dos pobres – e junto com eles a contenc?a?o do gasto em sau?de com estas pessoas. Ou pior, como Diegues escreve a certa altura, “Os decadentes Homo sapiens seguiam espalhados em desordem pelo planeta, vagando pelas a?reas mais pobres dos continentes, com fami?lias numerosas e sobrevive?ncia cada vez mais curta.” Ate? que finalmente “por di- versa?o e esporte, os Homo ricus passaram a cac?ar os Homo sapiens…” Sera? essa nossa escolha?

 

* Jose? Carvalho de Noronha e? me?dico sanitarista, doutor em Sau?de Coletiva e pesquisador do Instituto de Comunicac?a?o e Informac?a?o Cienti?fica e Tecnolo?gica da Fundac?a?o Oswaldo Cruz.

* Gustavo Souto de Noronha e? economista e superintendente regional do Instituto Nacional de Colonizac?a?o e Reforma Agra?ria do Estado do Rio de Janeiro.