Mais novos médicos nacionais, médicos estrangeiros e corporação médica no Brasil: o certo, o torto e o errado
Heleno R Corrêa Filho
Chegou a notícia de que o Conselho Federal de Medicina Brasileiro reprovou 95% dos médicos formados em faculdades latino-americanas que tentam revalidar seus diplomas no Brasil. A maioria é formada por brasileiros e filhos de brasileiros, sendo muitos deles filhos de médicos(as) brasileiros(as).
Junto, chegou o conhecimento de que o Governo da Presidenta Dilma, por intermédio do Ministro Aloísio Mercadante, planeja aumentar mais 2.415 novas vagas em cursos de medicina instalados no Brasil.
São dois movimentos irritantes de um confronto declarado entre a corporação profissional médica e a Saúde Pública do Brasil onde o(s) governo(s) federal(ais) se comporta(m) mal. A corporação médica também voltou a se comportar mal.
Falemos primeiro do governo, sob um ângulo que certamente não agrada muito quem é governo, mas que a imprensa do PIG aborda contando a história pelo contrário, responsabilizando indevidamente o governo de coalizão liderado pelo PT.
Desde o Governo demo-tucano (1994-2002), as faculdades de Medicina vêm sendo aumentadas em processo geométrico e durante o governo Lula-Dilma continuaram aumentando de modo aritmético (2003-2012). A filosofia de mercado neoliberal diz que educação é ‘commodity’ e deve ser livremente criada, exportada e vendida. Para isso o processo de criar faculdades PRIVADAS novas de Medicina acompanhou a redução da capacidade formadora das faculdades públicas.
Tais instituições se voltaram para a política suicida e subserviente à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), lideradas pelas corporações profissionais e científicas, embarcando no produtivismo acadêmico que vem liquidando a qualidade do ensino médico de graduação.
Tanto o governo Demo-Tucano quanto o governo PT-PMDB e base aliada promoveram ou cederam à abertura de novas vagas de graduação em medicina em condições inconvenientes para a qualidade da formação de novos médicos. Isso ocorre porque a “base aliada” de hoje é a mesma dos governos anteriores, composta por congressistas interessados na abertura de novas escolas privadas e que geralmente negam recursos novos para as escolas públicas.
Nas escolas públicas de medicina só se tornou possível “produzir” publicando mais relatos de pesquisa com a retirada de horas de ensino. Os professores passaram a participar de um quadro de recursos humanos reduzido e mal pago. Fazem pesquisa com pouco ou nenhum financiamento e buscam dinheiro extra de preferência no mercado privado.
O CNPq e outras agências de financiamento prosseguiram a tradição de pagar mal os projetos de pesquisa. O pesquisador-professor diz que precisa de 100 mil para uma pesquisa e “ganha” 80mil. É pegar ou largar. Os outros 20 mil saem do bolso ou do mercado privado. E tal obrigação de pesquisar e publicar sem apoio financeiro e de infraestrutura vem matando o ensino médico de graduação nas faculdades públicas.
Nas faculdades privadas o processo de decomposição do ensino vem de longa data. Existem cursos médicos com mensalidades de 4 a 6 mil reais onde os professores que completam cursos de doutorado são imediatamente demitidos para não ganharem salário maior. As faculdades privadas de medicina “enganam” o MEC credenciando corpos docentes com doutores e pesquisadores e, assim que a comissão da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) vai embora, os demitem.
Quem não é doutor não obtém financiamento de pesquisa. As maiores faculdades privadas de medicina mantêm um núcleo reduzido de doutores pesquisadores para mera demonstração caso recebam visitas de inspeção governamental. Seus quadros docentes de pesquisa são “para Inglês ver”.
Falemos agora da corporação Médica, que desde os anos 90 vem se encaminhando para a direita, defendendo ocasionalmente princípios da Saúde Pública e aderindo na maior parte do tempo às políticas de mercado, aos congressos médicos financiados por vendedores de fármacos e equipamentos, às viagens e subsídios privados em conflitos de interesse.
Durante os últimos vinte anos, os Conselhos Federal e Regionais de Medicina e a Associação Médica Brasileira e suas filiadas estaduais resistiram fortemente à revalidação de diplomas de médicos formados no estrangeiro. Desencadearam também um movimento pela revalidação dos diplomas nacionais em um “exame de ordem” do tipo realizado pela Ordem dos Advogados do Brasil. Esse exame dos advogados reprova 90% dos candidatos, a maioria deles formados em faculdades privadas que não têm ensino qualificado.
Como a formação de novos médicos tem seguido a mesma política de abrir faculdades novas para contentar caciques políticos regionais, acabará sendo necessário o exame de ordem. O governo federal não tem condições operacionais de atestar a qualidade do ensino de graduação em centenas de escolas. A redução de quadros de carreira governamental é a tônica do estado neoliberal e não tem sido revertida em épocas de superávit primário nos gastos públicos.
É impossível vigiar, qualificar e comparar a qualidade do ensino e da formação de novos médicos abrindo escolas e novas vagas sem controle. Criar exames-catraca é mais fácil que qualificar instituições. Quem controlará as catracas? Os donos de hospitais? Os médicos representantes de patrões donos de planos de saúde? Os donos de faculdades privadas de medicina? Os Chief Executive Officers (CEOs) das companhias que vendem medicamentos e equipamentos? Aqueles que pensam como um velho político baiano aliado da ditadura que dizia que “médicos são como o sal que é branco, barato e tem em qualquer lugar”? Os editores do submundo jornalístico ligado ao crime?
A corporação médica fica do lado da imprensa do “PIG” contra o governo aproveitando-se de momentos em que diz defender o SUS para defender seus interesses corporativos. Fica em cima do muro e tira casquinhas quando pode e quando convém de ambos os lados afirmando defender a Saúde Pública. Resiste de maneira fraca contra a abertura indiscriminada de novas vagas em cursos médicos de graduação sem hospitais escola, sem centros de saúde e sem laboratórios de ensino. Posiciona-se contrária (!) ao movimento federal de valorizar médicos que vão trabalhar no interior e na periferia das cidades quando voltam para se inscrever em exames de candidatura a cursos de residência médica. Defende o mercado privado reduzido para a corporação médica lançando contra as outras profissões de saúde o projeto discriminatório denominado “Lei do Ato Médico”.
Mobiliza-se timidamente quando o governo ameaça congelar salários de médicos de carreira com a MP568 que tramita no congresso. Entre defender o certo, o torto e o errado, a atuação política da corporação médica tem a sua história recente marcada pela defesa do mercado privado contra o SUS e contra as carreiras médicas de estado, pela adesão à política neoliberal de remuneração por procedimentos, pela revolta meio faz-de-conta e tardia contra as seguradoras e os planos de saúde, e pelo ódio aos médicos formados em CUBA.
No Brasil os médicos formados em Cuba são considerados ruins pela corporação médica porque vão para lá estudantes indicados pelos movimentos populares do MST, Via Campesina, partidos políticos de esquerda, e alguns estudantes livres que cruzam o oceano por conta do próprio sonho de liberdade encantados pela ilha que resiste aos EUA. O governo dos EUA tenta desde 1959 recolonizar a Ilha e transformar o país de novo em bordel com o bloqueio econômico indecente. Médicos formados em Cuba são um verdadeiro terror para os defensores da medicina do capital. Os nossos órgãos corporativos preferem os formados na Bolívia ou Paraguai contra qualquer médico formado em Cuba.
A corporação médica vem ignorando a realidade do MERCOSUL que nos obrigará a compartilhar exames e regras de validação profissional com Argentina, Chile, Peru, Equador, e também Colômbia e Venezuela. Há certamente bons médicos formados na Bolívia e no Paraguai se comparados com faculdades de medicina das periferias de nossas metrópoles. Os médicos formados na Argentina, Uruguai e Chile não ficam nada a dever em relação aos outros. Se a Venezuela exportasse médicos e não os tivesse que importar de Cuba também seria um terror. Médicos Chavistas no Brasil nem pensar.
Os exames de validação de diplomas estrangeiros no Brasil não seguem regras comparáveis às dos Board Examinations estadunidenses. A Inglaterra e os EUA importam médicos do mundo inteiro e detêm a tecnologia de triagem e formação aperfeiçoada para exames de qualificação para o exercício profissional. A comunidade europeia também tem regras para isso e médicos da Índia, Paquistão, países do Sudeste Asiático, África e da América Latina atendem de modo competente nos sistemas de saúde dos países centrais. Cuba forma e exporta médicos para o mundo inteiro tendo feito disso arma diplomática e política no relacionamento sul-sul com países não alinhados aos EUA.
O Brasil vem desenvolvendo técnicas de validação de competências médicas reconhecidas internacionalmente. Hoje não se avalia um médico apenas por respostas a provas escritas. Avaliar um novo médico em provas com perguntas tipo pegadinha de múltipla escolha é de uma incompetência descomunal. A avaliação atual pode ser e já é bem feita por exames com pacientes atores que simulam doenças em consultas padronizadas nas quais os médicos devem saber conversar e principalmente saber ouvir, devem saber lavar as mãos antes de examinar e diagnosticar e exigem modalidades de tratamento compatíveis com a organização do SUS e com a cultura dos pacientes. Essas técnicas estão bem desenvolvidas e podem ser utilizadas para os futuros ‘exames-de-ordem’ que são realidade inevitável, inclusive para a consolidação das regras de certificação internacional do MERCOSUL.
O nosso problema não é se vamos fazer exames de certificação. Nosso problema é quem fará esses exames. Na ausência de um órgão governamental centralizador os órgãos da corporação médica atual não estão qualificados de nenhuma maneira para sua autorregulação. Estes órgãos seguem atualmente os padrões neoliberais de mercado. As forças de mercado agem contra o interesse da saúde pública e contra o interesse do povo.
Por isso só é boa a notícia de que serão abertas vagas novas em escolas médicas se vier junto com um reforço para as escolas públicas sucateadas. Os professores das Universidades Federais estão em greve justamente pela falta desse apoio. Pior ainda é a notícia de que a corporação médica consegue elaborar um exame que reprova a totalidade de médicos formados no exterior. Não existe nenhuma vitória nisso. São duas medidas antípodas polares que não se complementam para responder às necessidades brasileiras de formação de novos profissionais médicos. O Governo Federal tem que responder com qualificação das universidades públicas. A corporação médica tem que agir pensando no Brasil e não na reserva de mercado.
Heleno R Corrêa Filho é médico sanitarista – Epidemiologista