Judicialização pode salvar o SUS
Por Sonia Fleury
Desde que a saúde se transformou em um direito universal e um dever do Estado (Art.196 CF/88), a dimensão jurídica da cidadania passou a ser progressivamente incorporada ao setor que antes se orientava apenas por pressupostos técnico-científicos e administrativos, na forma de organização do setor e oferta dos serviços. O fato de a Constituição assegurar a integralidade do atendimento, mesmo que com prioridade para as atividades preventivas (Art.198), tornou-se o principal argumento para que as necessidades insatisfeitas dos usuários do SUS se transformassem em demandas judiciais.
Ainda que o direito moderno traga implícita a utopia democrática da igualdade, como nos ensina Gramsci no Maquiavel (1980:152), a cidadania, como status jurídico e político a ser consolidado em cada situação concreta é também o espaço de lutas pela democratização da esfera pública e do Estado. Ao assumir a saúde como direito universal de cidadania, sem requisitos de contribuição prévia ou prova de incapacidade, o exercício deste direito passa a depender das necessidades dos indivíduos e das condições asseguradas pelo Estado para que o direito na lei se transforme em direito em exercício. Estas condições dependem das relações entre as forças sociais presentes na conjuntura.
O fato do SUS ter sido implantado em condições financeiras adversas, até hoje não superadas, certamente impede uma distribuição igualitária de serviços de qualidade, de forma que a população se sinta segura no usufruto deste seu direito. Esta contradição entre o texto legal e a realidade institucional é responsável pela chamada judicialização da política. Assim, se antes a arena da política de saúde incluía apenas o Executivo e o Legislativo pelo lado do Governo, cada vez mais o Judiciário passa a ser um ator atuante neste campo, além do papel regulador desempenhado pelas Agências do setor no controle do mercado.
A judicialização das políticas diz respeito ao uso do recurso judicial como forma de exigibilidade do direito, denegado na prática das instituições responsáveis. A tutela judicial pode ser tanto de caráter individual para acesso a bens e serviços (interposta por juízes ou defensoria pública) quanto a tutela coletiva, pelo Ministério Público, dos direitos sociais não individualizáveis e da probidade administrativa.
Não há dúvidas que a judicialização decorre do pelo aumento da democracia e da i nclusão social representado pela positivação dos direitos sociais, e pela difusão da informação e da consciência cidadã. No entanto, ele também é fruto das debilidades do Legislativo ao manter a indefinição do arcabouço legal e do Executivo, por atuar na ausência de definição de normas ou de parâmetros. que impeçam que as instituições estatais, por serem tão precárias, terminem se responsabilizando pela peregrinação (Fleury, (2011) dos usuários em busca da atenção, como expressão do contradireito (Foucault, 1977:195) à saúde.
A discussão sobre a possibilidade de que o deslocamento dos conflitos desde a representação política para o judiciário comprometa a democracia está baseada em dois argumentos. Por um lado, a separação de poderes como cláusula pétrea do funcionamento ideal do governo. Por outro, a suposição de que no Legislativo os conflitos possam ser transacionados, enquanto no Judiciário eles serão tratados por meio de uma sentença (Ruivo, 1994). Estes argumentos enfrentam forte oposição de outra corrente teórica que vê como democratização a etapa atual na qual a pluralidade de pontos de vista e a circularidade entre os poderes, introduziram novos canais de comunicação e negociação (Neves, 2012). Da mesma forma, vê na exigência de condições substantivas de exercício dos direitos a essência da democracia.
A judicialização da saúde no Brasil foi vista até agora como uma interferência indevida sobre a capacidade de planejamento e ação do Executivo e também como uma ameaça à ação dos gestores locais, fruto do hiperativismo da procuradoria. No entanto, creio que esta fase está sendo superada e defendo que a judicialização é hoje a maior aliada do SUS. (continua…)
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