O Brasil no processo de construção de uma reforma sanitária

Os anos noventa foram marcados pela forte presença dos princípios do neoliberalismo nos governos nacionais, com muito prejuízo para as políticas sociais, incluindo a saúde. Na sua avaliação, houve mudança neste panorama na década seguinte?

A promulgação da Constituição de 1988 e posteriormente a Lei n.º 8.080/1990, a chamada “Lei Orgânica da Saúde”, reafirmaram os princípios da reforma sanitária democrática debatida nos anos 80, porém sua implantação colidiu com a orientação geral da política econômica e tributária da época.

Durante a década de 90, ocorreu um importante subfinanciamento do setor acompanhado de uma ênfase na descentralização que, à falta de incremento real de recursos, correspondeu fundamentalmente a uma desoneração de obrigações por parte da União. A análise da distribuição da responsabilidade pública do gasto com saúde entre as três esferas de governo, na década de 1990, mostra que a União reduziu substantivamente a proporção de sua participação no aporte de recursos para a saúde, enquanto a proporção dos gastos municipais com saúde mostrou tendência de crescimento, e o crescimento de gastos dos estados, embora menor, também foi significativo, passando de 18% para 24% no mesmo período. Se em 1990, os gastos da União respondiam por 72,7% dos gastos públicos em saúde, em 2000 caem para 59,8%.

Um dos resultados dessa retração da participação federal no financiamento do SUS é um estímulo ao crescimento dos planos e seguros públicos e privados de saúde que cobriam em 1998, vinte e cinco por cento da população brasileira.
No Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição de 1988 (Art. 55) foi fixada em trinta por cento, no mínimo, a proporção do orçamento da Seguridade Social a ser destinada ao setor saúde. Pretendeu-se, a seguir, além de fixar em definitivo aquele percentual da receita das contribuições sociais, vincular parte da receita de estados e municípios à saúde, à semelhança da educação. A Emenda Constitucional n.º 29/2000 manteve a vinculação das receitas de estados e municípios em 12 e 15 por cento respectivamente, mas rompeu com o princípio daquela vinculação, fixando apenas o seu crescimento à variação nominal do Produto Interno Bruto (PIB).

Essa emenda, entretanto, quebrou o princípio de financiamento solidário da seguridade e dificultou acréscimos superiores à variação do PIB, transformando o que deveria ser piso em teto para o aporte de recursos federais para a saúde. Essa não é uma questão menor, pois, desde 1994, com a criação do FSE, já haviam sido subtraídos da Seguridade 20% de sua arrecadação, que se mantiveram permanentes sob a forma de DRU, recursos em quase sua totalidade destinados ao pagamento dos encargos financeiros da União.

A partir do início do século XXI o resultado dessas políticas traduziu-se na composição do gasto em saúde no Brasil. O Brasil já comprometia, em 2007, 8,4% de seu PIB com gastos com ações e serviços de saúde, situando o país nos mesmos patamares de apropriação da riqueza nacional para a saúde de países da OCDE, como o Reino Unido (8,4%), Espanha (8,5%), Itália (8,7%) e Austrália (8,9%). Evidentemente esta participação no PIB não traduz a mesma magnitude no gasto per capita, que, para 2007, registrava em Paridade de Poder de Compra, US$ 884 para o Brasil, comparados a US$ 2.671, para a Espanha, US$ 2.686 para a Itália, US$ 2.992, para o Reino Unido e US$ 3.357 para a Austrália (OECD, 2009).

Os países que optaram por sistemas universais e equitativos apresentam acentuado predomínio dos gastos públicos. Continuando com 2007 como o ano de referência, e usando alguns exemplos com os dados dos países da OCDE (OECD, 2009), vemos que a participação do gasto público foi de 84,5% na Dinamarca, 81,7% no Reino Unido, 79,0% na França, 76,5% na Itália, 71,8% na Espanha. O Brasil, com 41,7%, alinha-se com os países da OCDE com maior iniqüidade, tanto nas condições de saúde quanto no acesso e uso dos serviços de saúde, os Estados Unidos, 45,4%, e o México, 45,2%.
Outro aspecto diz respeito à repartição do gasto per capita com os cuidados de saúde. Descontados os gastos gerais, não explicitamente seletivos do setor público, como a saúde pública, o programa de imunizações, as ações de vigilância sanitária e com a alta complexidade não coberta privadamente, em torno de 15% do gasto público total, e considerando os dados da PNAD de 2003 e 2008, que identificam 25% da população como estando coberta por planos e seguros de saúde, pode-se estimar, para 2007, que os gastos per capita com atenção à saúde ficaram em R$ 480 para os que têm acesso exclusivamente aos serviços do SUS, contra R$ 1.128 para os que também têm cobertura por planos. Isto representa uma flagrante infração distributiva.

Se este quadro denotava graves distorções, construiu-se uma agenda de financiamento público para a saúde centrada em três eixos: a definição clara do que se constituem despesas em saúde, a cobrança do cumprimento da proporção da receita para cobertura dessas despesas a Estados e Municípios, particularmente aos primeiros, e, em terceiro lugar, o aumento dos recursos da União aplicados em ações e serviços públicos de saúde. Essa luta voltou a ganhar força com a extinção da CPMF. Discutiu-se o retorno dessa contribuição não mais como fonte substitutiva, mas como fonte de recursos adicionais para saúde. Isso tudo como parte do processo de regulamentação da EC/29. Em setembro de 2011, a Câmara Federal reduziu em muito a possibilidade de reinstituição de uma contribuição financeira dedicada exclusivamente à saúde. Este é um dos elementos centrais para a análise de que apesar de avanços significativos do ponto de vista das políticas sociais, ainda há muito que se conquistar para alcançarmos os objetivos traçados no processo de construção de uma reforma sanitária.

Neste período de consolidação dos preceitos constitucionais e da Lei 8080, os obstáculos ligados a matriz de financiamento do sistema de saúde foram centrais para a definição dos avanços possíveis. Quais seriam os principais problemas no que se refere a compatibilidade entre a implantação de um sistema universal, sua sustentabilidade financeira e a política tributária?

Aqui se tem duas ordens de problemas: a primeira na ideia da vinculação de um tributo a uma ação governamental específica. Como foi anteriormente salientado, a Constituição de 1988 buscou vincular solidariamente contribuições à saúde, previdência e assistência social. Essa vinculação foi mantida no texto constitucional quando da criação da CPMF em 1996, apesar das desvinculações impostas para cobertura das despesas financeiras do governo. Portanto, a proposta de obter uma contribuição especifica para um dos componentes da Seguridade Social só viria a agravar a fratura iniciada nos anos 1990, e acentuada quando se vincularam os recursos da folha de pagamento aos benefícios tipicamente previdenciários. Também faz pouco sentido fiscal atribuir uma vinculação entre uma contribuição e uma ação específica em tempos de simplificação tributária.

A segunda ordem de problemas, mais grave, situa-se na proporção da apropriação da riqueza nacional para gastos com ações e serviços de saúde. Oito vírgula quatro por cento do PIB já é uma apropriação generosa, quando sabemos que gastos com educação, saneamento, alimentação, segurança pública e geração de empregos apresentam com frequência maiores impactos sobre as condições de vida e saúde das pessoas (OMS, 2011). Como esse gasto é majoritariamente privado, é imperioso que se aumentem os gastos públicos com os cuidados de saúde. Por exemplo, mantida a proporção da participação para gastos em saúde das receitas da seguridade social prevista na Constituição de 1988 de 30%, mesmo depois da extinção da CPMF como fonte de financiamento, o orçamento do Ministério da Saúde teria passado dos 61,1 bilhões de reais executados, para 137,6 bilhões em 2010, o que certamente minimizaria muito os problemas de atendimento e cobertura assistencial que persistem em larga escala. Isto equivaleria aproximadamente uma elevação dos gastos em saúde em 2,1% do PIB, elevando o gasto total para 10,5% do PIB e a proporção do gasto público de 41,7 para 53,4%.

Apesar das manifestações de segmentos da imprensa e setores conservadores em relação ao peso da carga tributária, há margens para seu manejo, sobretudo em montante tão reduzido. Em primeiro lugar, o Brasil exibiu uma carga tributária bruta de 34,4% de seu Produto Interno Bruto em 2010, posicionando-o em 31º lugar entre os países, distantes daqueles mais justos socialmente – por exemplo, Dinamarca, 49%, Suécia, 48%, Bélgica 46,5%, França, 44,6%, Alemanha, 40,6% e Reino Unido, 38,9%.

A incidência de carga tributária no Brasil atinge exageradamente a folha de salários e sobre o consumo e poupa a tributação da renda, e por conta da predominância dos tributos indiretos, atinge com mais intensidade os decis de renda familiar mais baixa. A progressividade que poderia ser obtida através dos impostos sobre a renda é bastante limitada no Brasil pelo pequeno número de alíquotas e pelo percentual de incidência da alíquota máxima (27,5%).

559122_4265834556406_465903957_nAinda há gastos que dizem respeito à justiça tributária e que não são contabilizados no gasto total com saúde. São con hecidos como subsídios ou renúncia fiscal, isenções e abatimentos. Um dos tipos de subsídio são as desonerações fiscais, que são os gastos públicos indiretos, assim denominados por serem contabilizados como gastos públicos sem terem sido realizados pelo Estado, mas por ente privado, como os gastos que permitem dedução do valor do tributo a pagar por empresas e famílias, ou mesmo descontos tributários, sob o argumento de beneficiar determinados setores. O fato é que este tipo de gasto diminui o montante arrecadado pelo Estado, ou seja, reduz a carga tributária e, portanto, o que seria a receita pública caso não existisse. Portanto deveria ser profundamente analisado para avaliar se o benefício gerado corresponde ao recurso que se perde.

A Constituição elevou a saúde à condição de direito social universal. Entretanto, houve grande mudança no cenário político e econômico desde então. Diante disso, o senhor acha que tal condição ainda será possivel?

Os êxitos e desafios que movimentam as novas bases institucionais da gestão e do cuidado à saúde no país impõem uma profunda avaliação do caminho percorrido pela reforma setorial na operacionalização do direito à saúde nos últimos vinte anos, como preparação para um novo investimento político e institucional no desenho de inovações capazes de lidar com os problemas que se acumulam na gestão do Estado Federal Brasileiro nesta década.

São necessários atores estratégicos para o sucesso na implantação de uma política de saúde que faça cumprir a universalidade e equidade inscritas no texto constitucional. Mas os atores estratégicos para este processo não vêm sendo, há tempo, nem a classe trabalhadora organizada (que demanda planos privados e os trata como objeto de negociação trabalhista pelos sindicatos junto às grandes empresas industriais), nem os profissionais de saúde (que buscam aumentar a produção destinada ao demandante que paga o maior preço, portanto não o SUS, mas os planos privados). Os próprios servidores públicos, tanto civis como militares, e seus dependentes têm uma assistência exclusiva para eles e em parte financiada com recursos públicos o que constitui um desvio para qualquer melhora do SUS, pois enquanto estiverem protegidos de outra forma que o SUS, toda sua atuação em prol deste sistema se daria por ideologia, compaixão ou amor ao trabalho, mas não por ser o sistema que queiram usar para si ou para os seus. Esses atores fazem parte da nossa sociedade, cuja ambiguidade em relação à universalidade na proteção social nada mais é que o espelho da segmentação da sociedade brasileira.

A política de saúde deveria ser reorientada para interferir em prol de uma proteção social que defenda os interesses públicos, baseada em princípios solidários. Para isso é preciso uma política que proteja os objetivos do SUS, mesmo que mantenha híbrido o sistema de saúde brasileiro (pois existe espaço para a oferta de forma privada dos serviços que são demandados, mas não oferecidos pelo sistema público e, como nenhum sistema de saúde é capaz de oferecer todo e qualquer procedimento, o mix público-privado é inexorável a todos os sistemas de saúde), mas tornando este sistema mais voltado para responder às necessidades de uma proteção social solidária e menos desigual.

Nesse sentido, considero que o caminho percorrido até agora na construção do SUS, demonstra a vitalidade da proposta e a necessidade de estarmos sempre reavaliando os passos dados, buscando principalmente maior eficiência dos programas implantados, aumentando a integração com outras políticas setoriais obtendo com isso a elevação da intersetorialidade e a efetividade das políticas sociais. Do mesmo modo, trazer a saúde para o centro da discussão sobre o desenvolvimento do país também traz benefícios concretos, pois dessa forma passamos a construir outro olhar para o setor como gerador de emprego e renda, além de tratarmos da necessidade da redução da forte dependência externa com os investimentos no complexo produtivo da saúde. Todas essas contribuições fazem parte do processo de consolidação do direito universal à saúde.

16-11-2012