A corporação médica versus o Sistema Universal de Saúde
De Isabel Bressan, diretora do Cebes
Vejam que nenhum sistema de saúde universal prosperou sem enfrentar resistência da corporação médica. No meu Mestrado em Politicas Públicas de Saúde, fiz uma compilação do artigo “The Logic of Health Policy-Making in France, Switzerland, and Sweden”, que compara a introdução dos sistemas nacionais de saúde da França, Suíça e Suécia em relação ao sucesso da oposição médica à “socialização da medicina”.
Encontrei as seguintes conclusões da autora e suas evidências:
1- Os médicos opuseram-se à socialização da medicina nos três países França, Suíça e Suécia, com diferente intensidade e usando diferentes meios e com diferentes resultados. Combatiam especialmente o controle de honorários médicos porque o consideravam como uma forma de acabar com a autonomia médica.
Também nos três países os médicos detinham o monopólio formal da assistência, o que tornava a greve uma arma poderosa de luta. Estavam organizados em associações e exerciam influência sobre os políticos.
A autora concluiu, porém, que os resultados alcançados não foram diretamente proporcionais à capacidade de influência da classe médica, mas foram modulados pela sua posição e pelo aproveitamento de oportunidades de veto do Estado, possibilitadas ou não pelos diferentes desenhos institucionais vigentes.
Na França o processo resultou na implantação de num sistema nacional e no controle relativo dos honorários médicos por meio da obrigatoriedade da negociação deste entre os médicos e os fundos públicos de saúde. Porém isto se deu depois de um longo processo no qual os médicos exerceram grande influência política num primeiro momento, por meio de associações politicamente competentes que exerciam pressão sobre parlamentares que possuíam poder estratégico de vetar a legislação. Por fim o relativo controle sobre eles veio por meio do aumento da capacidade de poder político do executivo, por meio de mudança das regras institucionais.
Na Suíça os médicos conseguiram vetar completamente o controle de seus honorários e a implantação de um sistema nacional por meio de sua capacidade de influenciar os possíveis votantes em um referendo proposto e temido pelo executivo. Por outro lado conseguiram que fosse aumentado o subsídio público para a medicina privada.
Na Suécia os médicos eram mais sindicalizados, porém com sindicatos mais fracos que os da França. Existiam em quantidade relativamente maior que na Suíça, mas nem por isso conseguiram bloquear a implantação de um sistema nacional público por parte de um executivo com maioria parlamentar e livre de vetos parlamentares e populares, que os assalariou, aumentou o número de médicos mesmo contra a opinião da associação médica, proibiu a atividade privada nos hospitais públicos e reduziu os honorários médicos privados nos hospitais públicos a valores simbólicos, o que resultou numa restrição à atividade privada em consultórios por meio da concorrência com o atendimento público.
2- A autora concluiu também que diferentes ideologias dos formuladores de políticas, diferenças na participação política da comunidade ou nas preferências e modos de organização de grupos de interesse ou a presença de centralização administrativa foram fatores menos relevantes nos resultados dos processos de implantação de sistemas públicos de saúde nos países estudados do que as regras institucionais vigentes, que determinam o alcance efetivo dos grupos de interesse por meio de influência em um legislativo com maior ou menor poder de veto ou por meio da pressão sobre eleitores na escolha de representantes ou em um possível referendo.
Os governos da França, Suíça e Suécia tentaram igualmente estabelecer sistemas públicos de saúde, por certo influenciados por demandas sociais. Porém, a condução da implantação efetiva por meio de legislação seguiu diferentes caminhos nestes países, caminhos estes pautados principalmente pelo desenho das instituições políticas.
Também os resultados foram fruto de como as forças sociais e políticas estiveram organizadas para a batalha e de que meios dispunham de vetar a implantação do sistema público. O teor ideológico e o tamanho destas forças foi menos relevante do que as regras do jogo político que nortearam sua influência.
Na França, as reformas foram efetivadas por um executivo de direita com grande poder, por causa da ausência de veto parlamentar, condição esta diferente das que provocaram o fracasso de governos anteriores onde a força dos grupos de interesse contrários às reformas entre os parlamentares era grande, num ambiente de pouca fidelidade partidária.
Na Suíça, a existência da possibilidade de grupos relativamente pequenos convocarem um referendo e de sua capacidade de influenciar eleitores deste, numa condição de voto não obrigatório, onde a minoria votante era representada pela camada mais rica e instruída da população, impediu a implementação do Sistema Nacional de Saúde.
Na Suécia um executivo forte, com representação proporcional, uma primeira câmara eleita indiretamente, que ajudava a manter uma maioria parlamentar, estável, sem a ameaça de vetos juntamente com uma monarquia que exercia um papel de incentivar a discussão técnica das questões e forçava o controle da burocracia estatal na implantação das políticas, pode implantar um sistema nacional de saúde realmente socializado.
Portanto, só um Estado forte e com apoio popular pode enfrentar a corporação médica e implantar um sistema nacional de saúde realmente socializado.
(1) IMMERGUT, E M 1995 The Rules of the Game: The Logic of Health Policy-Making in France, Switzerland, and Sweden, In: Structuring Politcs (pp. 57-89), Cambridge University Press.