A falta de profissionais médicos: de quem é a culpa?

Depoimento: Fernando Maia, Médico de Salvador – 11/7/13

“Há 5 anos, eu era muito mais idealista. Acreditava no SUS, na possibilidade de garantir um bom sistema público de saúde para a população. Escolhi uma especialidade quase esquecida, minguante, a Medicina Preventiva e Social. Minha vontade era trabalhar na gestão do SUS, buscando a melhoria da atenção.

Logo no início da residência, me deparei com um dos problemas tão na moda das discussões ultimamente: a falta de médicos. Na unidade em que eu estagiava, um dos médicos estava se despedindo, pois seu contrato havia acabado. Ele não queria sair da unidade, ele não tinha outro vínculo, ele não estava se mudando em busca de um salário maior… ele saiu porque seu vínculo com o município havia terminado. Da mesma forma que ele, vários outros também saíram na mesma época.

Após algumas andanças pelo país, trabalhando como médico e como sanitarista, presenciei que de fato faltam médicos. Em municípios grandes, pequenos, médios, quase sempre há algum déficit de profissionais. É relativamente fácil conseguir algum emprego em qualquer região do país. Claro que os melhores empregos sempre são mais concorridos. Afinal, se eu tenho 8 médicos numa localidade, e 10 vagas, os profissionais vão procurar as que têm melhores condições de trabalho

E porque algumas vagas não são preenchidas? Os motivos são diversos, e não sei dizer qual é prioritário, depende muito de cada profissional.

Materiais e equipamentos disponíveis costumam importar bastante para o profissional. Não dá para trabalhar sem o mínimo necessário. Isso envolve luvas, seringas, medicações, sabonete, álcool, e tantas outras coisas básicas que muitas vezes faltam em algumas unidades. Já atendi uma paciente que precisava de uma medicação injetável para enjoo, e tive que encaminhá-la para outra unidade, pois não tinha medicações injetáveis. Na verdade, não tinha nem soro, nem equipo, tampouco medicações injetáveis.

Vínculo de trabalho também é algo importante. Muitas vezes os médicos são contratados por pessoa jurídica, ou como prestadores de serviço autônomos. Nesses casos, além de frequentes atrasos e calotes, também estão sujeitos a demissões por divergências com os prefeitos ou secretários. Outra forma comum são os contratos temporários, que garantem uma estabilidade só por determinado período, que geralmente não ultrapassa 4 anos.

Morar distante dos grandes centros é uma escolha, que acarreta uma série de mudanças na vida da pessoa. Existe menos violência, o ar é mais puro, é menor a correria, o contato com a natureza é maior… E é necessário abdicar de cinema, teatro, internet banda larga, opções de lazer, diversidade de bares e restaurantes, etc. É muito fácil criticar via internet, enquanto aguarda a hora de ir para o cinema, os profissionais médicos que não vão para o interior. Difícil é repensar a vida e abrir mão de coisas que te agradam e de fato se mudar para o interior.

Para quem trabalha nas periferias das grandes cidades, outra questão se aflora: violência. Ouvir tiroteios, ser agredido verbalmente (ou até fisicamente), ter que interromper o trabalho por conta de ordens do tráfico, dentre outras coisas, fazem parte do cotidiano de quem trabalha nesses lugares. Chegar distraído no bairro e esquecer-se de baixar os vidros com insufilm pode resultar num tiro (não é ficção, é baseado em fatos reais…).

Enquanto que alguns países trabalham com média de 1.000, 1.500 pessoas por médico na atenção básica, no Brasil a proporção é pelo menos o dobro. E em vários locais chega a 5, ou até 7 mil pessoas por equipe. Difícil criar vínculo, conhecer as famílias, realizar ações de maneira qualificada com esse contingente populacional. A sobrecarga desestimula o profissional, e é muitas vezes o motivo de demissão.

A falta de uma carreira também é dos fatores desmotivadores. Não há vantagem em ficar anos no interior, pois cada município contrata independentemente. Não há uma carreira unificada, e caso queira se mudar após um tempo, o médico deve desistir do contrato atual (quando existe) e se lançar num novo emprego, começando do zero.

Faltam médicos. Mas se não se investe em medidas estruturais, vão continuar faltando. Criar um programa de bolsas, com duração de 3 anos, não resolve os problemas. Quantos médicos estão dispostos a abrir mão de seus vínculos profissionais, de sua casa, de sua família, para se lançar em um programa de bolsas? Na realidade, já ouvi médicos dizendo terem sido coagidos pelos gestores a abrir mão dos vínculos atuais para se inscrever no “Mais Médicos”, pois daí o gestor não teria mais que pagar o salário, caberia ao ministério. A entrada de estrangeiros pode até resolver a falta de médicos no curto prazo, mas não vai ser estruturante a médio ou longo prazo.

A ação indicada para médio prazo, a implantação do segundo ciclo, me parece confusa. Mesclaram o serviço civil obrigatório com a proposta de complementação prática da graduação, e o resultado não ficou dos mais consistentes. Em um modelo, a premissa é de que os profissionais, já devidamente habilitados, precisam prestar um serviço para o país (a exemplo do serviço militar). Nesse caso, a justificativa é a falta de profissionais em determinadas regiões. No outro, a premissa é de que a graduação não é suficiente para habilitar para o exercício da medicina, e é necessária uma complementação iminentemente prática para conceder o registro profissional. Se a premissa utilizada é essa última, me falta substrato que a fundamente (de onde se tira a afirmação de que os graduados em medicina não são habilitados para o exercício profissional? Quais estudos fundamentam essa afirmação?).

No Reino Unido, após a faculdade, o recém-formado tem que realizar um treinamento em serviço, visando desenvolver as habilidades práticas necessárias ao exercício da medicina. Realizando atendimentos supervisionados e procedimentos, ele vai progressivamente ganhando autonomia. Isso ocorre em diversos cenários de prática (não é só na atenção básica), e após várias avaliações teóricas e práticas ele recebe o registro profissional definitivo. É, portanto, um programa iminentemente de treinamento, que necessita de médicos habilitados para a supervisão. Sendo treinamento, ele não vai levar médicos para locais que não possuem profissionais, e sim treinar novos profissionais em locais em que profissionais já habilitados exercem suas atividades.

Também tem me incomodado o bordão de que se precisa de “médico que cuide de gente”. Primeiro, que já coloca num segundo plano especialidades fundamentais, como a patologia, que não lidam diretamente com pessoas. Segundo, que restringe o conceito de “gente” às pessoas que são atendidas pela atenção básica. Mesmo num cenário ideal (que gostaria que acontecesse no Brasil, mas está longe da realidade), a atenção básica vai ser responsável pela resolução de 80% ( ou até 90%, dependendo da referência) dos problemas de saúde. Os 10% (ou 20%) que precisam de especialistas não são gente? Cirurgião não cuida de gente?

Estou extremamente desestimulado. Ao invés de valorizar quem trabalha na atenção básica, e trabalhar por políticas que transformem a realidade, como instituição de carreira de estado, como mudanças nas atribuições dos municípios no que se refere à saúde (pode um município de 2 mil habitantes ser responsável pela saúde da sua população?), como mudanças curriculares na formação médica (da graduação à residência), o governo escolheu jogar a população contra os médicos, atribuindo aos profissionais a culpa pela falta deles. Nessa falsa disputa, quem sai perdendo é o SUS, que continua sem uma saída consistente para a falta de profissionais médicos”.

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