As prioridades invertidas do Estado Brasileiro
Em entrevista ao Cebes, o Professor Áquilas Mendes critica a argumentação de rigidez orçamentária apresentada pelo governo como entrave à destinação de 10% da receita corrente bruta ao SUS. Sobre os gastos com saúde, Mendes afirma que o SUS sempre enfrentou problemas de financiamento e mostra como a redução no percentual do PIB destinado à saúde tirou cerca de R$ 180 bi do sistema público brasileiro nos anos 2000. Pede o fim da DRU e a colocação das áreas sociais como verdadeiras prioridades do governo. Professor da USP, Mendes é Doutor Livre-Docente de Economia da Saúde da Faculdade de Saúde Pública da USP e do Departamento de Economia da PUC-SP e membro da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco).
Cebes: Como você avalia as negociações ocorridas até o momento com o governo a respeito do Saúde+10?
Áquilas Mendes: Até o momento não houve negociações, porque o governo ainda não apresentou uma proposta diferenciada do Projeto de Iniciativa Popular, assinado por mais de 2 milhões de brasileiros, que reivindica maior volume de recursos para o SUS como parte da defesa histórica na área da saúde por ampliação dos recursos públicos, especialmente por parte da União, indicando que esse nível de governo aplique 10%, no mínimo, da sua Receita Corrente Bruta (RCB). O governo apenas comentou que seria preciso nova fonte de recurso para tanto e que irá preparar uma proposta que trocará a base de cálculo RCB e tentará apresentar um escalonamento gradativo de percentuais a serem aplicados ao longo de alguns anos até atingir o pretendido.
Quais possibilidades você vê nessas discussões? É possível avançar com a posição que o governo tem adotado?
O governo federal retorna com os mesmos argumentos quando da discussão da regulamentação da EC 29, sob a aprovação Lei 141/2012, para o Movimento Saúde +10. Primeiro, afirma que vem aumentando o investimento em saúde entre 2003 a 2011, passando de um gasto per capita de R$ 244,80 para R$ 407,00, correspondendo a um acréscimo de 66%. Contudo, não esclarece que no primeiro ano do Governo Lula, em 2003, o gasto per capita com saúde foi o menor entre os anos de 1995 e 2011. Segundo, o governo federal insiste em comentar o seu quadro de rigidez orçamentária. Do total do seu orçamento para 2013 (R$ 2,2 trilhões), 46% estão comprometidos com as despesas financeiras, sendo o pagamento de amortização e juros da dívida. Interessante é que aqui não fica explicitado que se trata de uma escolha prioritária há anos. Os demais 54% do Orçamento estão comprometidos com as despesas primárias, incluindo: as despesas obrigatórias – previdência, pessoal, abono, seguro-desemprego, LOAS, etc – (R$ 893 bilhões) e despesas discricionárias (R$ 272 bilhões), sendo elas com: áreas protegidas – educação, saúde, Brasil sem miséria, PAC e inovação – (R$ 206 bilhões); com as demais obrigatórias – benefícios dos servidores – (R$ 8 bilhões), com cortes efetuados (R$ 22 bilhões) e todas as demais áreas (R$ 36 bilhões). Nesse quadro, o governo afirma que o correspondente aos 10% da RCB da União para a saúde em 2013 (R$ 40 bilhões), ultrapassaria o total das áreas não protegidas R$ 36 bilhões. Bem, todos esses números servem ao seu argumento de rigidez orçamentária, reforçando a sua defesa que para ampliar recursos para a saúde é preciso conseguir nova fonte de financiamento. Em nenhum momento o governo questiona as suas prioridades de gasto que, como vimos, distanciam-se dos gritos das ruas.
Além disso, o argumento do governo é pela inviabilidade da Receita Corrente Bruta enquanto base de cálculo para aplicação na saúde. Diz o governo que a União tem que descontar dos recursos da RCB aqueles que já estão pré-definidos como as transferências constitucionais para estados e municípios (FPM, FPE), o Fundeb, os royalties, o salário-educação, as contribuições previdenciárias e outros. Porém, não está definido no Projeto de Iniciativa Popular que os 10% devem ser retirados de cada uma das fontes, mas sim o correspondente ao “montante igual ou superior a 10% da RCB” . A base RCB busca distanciar-se, de forma mais direta, das variações cíclicas da economia, mensuradas pelo PIB, que não vem crescendo no mesmo patamar que o esforço de arrecadação da União (impostos e contribuições). Trata-se de valorizar que o investimento da saúde seja correspondente à capacidade de arrecadação do governo federal (RCB) que cresceu, entre 2000 a 2012, 65,5%, enquanto o PIB aumentou apenas 5,9% (valores deflacionados pela média anual a preços de dezembro de 2012, conforme o IGP-DI/FGV). Por sua vez, a Receita Corrente Líquida da União – base de cálculo defendida pelo governo – teve um incremento inferior a RCB, sendo 56,6%, nesse mesmo período.
Os 10% da RCB como percentual fixo para a saúde pública não resolve o problema do subfinanciamento crônico do SUS. Até quando iremos lutar e mobilizar esforços na defesa de um orçamento adequado para o SUS?
Se aprovado o projeto, o SUS contará com um acréscimo para o orçamento do Ministério da Saúde de 2013 em cerca de R$ 40 bilhões, sendo 0,8% do PIB. O pleito do Projeto de Iniciativa Popular é importante para a sobrevivência do SUS, mas temos consciência de que não resolve por completo o subfinanciamento histórico da saúde pública no Brasil.
A história do SUS é marcada pelos problemas de financiamento. Os recursos públicos envolvidos sempre foram insuficientes para garantir uma saúde pública, universal, integral e de qualidade. Em 2011, o gasto público brasileiro em saúde (União, estados e municípios) foi de 3,84% do PIB, enquanto que a média dos países europeus com sistemas universais foi de 8,3% do PIB, o que evidencia a dificuldade de recursos do SUS para realizar suas ações e serviços.
Iniciamos a década de 2010 sem resolver esses grandes conflitos, na medida em que a Lei 141/2012 (regulamentação da Emenda Constitucional 29), indicando a participação das três esferas de governo no SUS, manteve o cálculo anterior da participação do governo federal (valor apurado no ano anterior corrigido pela variação nominal do PIB), não tendo sido aprovada a introdução de um percentual de 10% sobre a Receita Corrente Bruta (RCB), conforme defendido há anos pelas entidades associadas à luta por uma saúde universal e pelo Movimento Saúde + 10 mais recentemente. Em 1995, o governo federal gastou com ações e serviços de saúde o equivalente a 1,75% do PIB; passados 17 anos (2012), essa proporção praticamente se manteve. Os gastos federais com ações e serviços públicos de saúde diminuíram em relação à Receita Corrente Bruta da União. Em 1995, representavam 11, 7% dessa receita e, em 2011, registravam apenas 7,5% da mesma base. O montante de recursos perdidos durante os anos 2000 registram aproximadamente R$ 180 bilhões quando comparados entre a indexação à receita corrente bruta e à variação do PIB nominal.
Assim, a nossa luta para mobilizar esforços na defesa de recursos suficientes e fontes estáveis deve seguir a meta dos países com sistema universais de saúde, como dissemos. Outras propostas de novas fontes devem ser debatidas.
Qual o papel dos movimentos e entidades identificados com a reforma sanitária nesse processo?
Em primeiro lugar, valorizamos o Movimento Saúde + 10. Ele está ciente que a RCB constitui base de cálculo que contribui para a busca de uma sustentabilidade financeira para o SUS, recuperando em parte os recursos perdidos ao longo dos seus 25 anos de existência. Entende o Movimento, também, que a metodologia de aplicação da União deve ficar compatível às bases de cálculo de aplicação dos estados e municípios, à medida que essas últimas correspondem ao total das receitas de impostos, compreendidas as transferências constitucionais, o que significa o esforço próprio de arrecadação. Assim, a utilização de percentual da RCB da União visa assegurar a isonomia no trato do financiamento da saúde nas três esferas de governo.
Ainda, cabe lembrar que a defesa pelo valor correspondente à RCB decorre de sua visibilidade nas contas públicas federais e de difícil manipulação, como seria o caso da Receita Corrente Líquida – com diferentes conceitos. Além disso, trata-se de dado de menor possibilidade de interpretação, o que levaria a menores questionamentos jurídicos. É conhecida a celeuma em torno dos quase dez anos, após a EC 29, sobre o que deveriam ou não ser consideradas como despesas com ações e serviços e saúde. Por fim, a defesa da RCB tem o apoio de 2 milhões de assinaturas dos brasileiros, o que justifica a sua não alteração por todos os que desejam ouvir as manifestações das ruas. Apoiemos a defesa do Movimento Saúde +10.
Em segundo lugar, é significativo considerar, também, na discussão sobre o financiamento do SUS, o enfrentamento ao incentivo concedido pelo governo federal à saúde privada. Especialmente, vem se notabilizando os incentivos na forma de redução de imposto de renda a pagar da pessoa física ou jurídica, o que é aplicada sobre despesas com Plano de Saúde e/ou médicas e similares. Além disso, há que acrescentar as renúncias fiscais que experimentam as entidades sem fins lucrativos (como os Hospitais de Excelência) e a indústria farmacêutica, por meio de seus medicamentos. Nota-se que o total desses benefícios tributários à saúde privada vem crescendo de forma considerada. Registre-se: R$ 4,6 bilhões, em 2004; passando para R$ 20,0 bilhões, em 2012 (estimativas da Secretaria da Receita Federal). Tal recurso, se destinado ao SUS, contribuiria significativamente ao financiamento desse sistema.
Em terceiro lugar, as entidades identificadas com a reforma sanitária reconhecem que as possibilidades de valorização dos direitos universais à saúde, por meio da prioridade ao financiamento do SUS podem ser alcançadas por outros percursos, diferentes de se apoiarem em tributos que incidem sobre a lógica produtiva. É na esfera financeira que eles devem ser mais pensados. Essa deve ser uma luta no médio prazo. Para tanto, costumo mencionar as seguintes propostas: 1) a ampliação da alíquota da CSLL (fonte de financiamento para a saúde) para instituições financeiras (atual 9%) para 18%, conforme Projeto de Lei já existente no Congresso Nacional; 2) o aprofundamento dos mecanismos de tributação para a esfera financeira, mediante a criação de um Imposto Geral sobre a Movimentação Financeira (IGMF) e a tributação das remessas de lucros e dividendos realizadas pelas empresas multinacionais, atualmente isentas na legislação, destinadas ao Orçamento da Seguridade Social (saúde, previdência e assistência social); 3) o estabelecimento da Contribuição sobre Grandes Fortunas com destinação para a Seguridade Social (projetos já existentes na Câmara Federal). 4) rejeitar a permanência da DRU, como forma de não prejudicar a “saúde” financeira do Orçamento da Seguridade Social.
Sobre fontes de financiamento para o valor adicional proposto para o movimento Saúde+10, quais seriam as alternativas dentro do cenário econômico e social atual?
Antes de tudo, é preciso dizer que no plano mais geral, um dos constrangimentos para a ampliação do gasto em saúde pública centra-se na esfera da política macroeconômica desenvolvida pelos últimos governos (de Fernando Henrique Cardoso, de Luiz Inácio Lula da Silva e de Dilma Roussef), na qual um dos objetivos é realizar anualmente substantivo superávit primário (receitas menos despesas, das três esferas de governo, sem considerar os juros da dívida pública), com objetivo explícito de manter sobre controle o nível de endividamento do país e não o desenvolvimento dos direitos sociais dos brasileiros. É a partir dessa política que entendemos o governo apresentar que seu orçamento está comprometido com 46% para o pagamento de amortização e juros da dívida. Isso precisa ser denunciado pelas entidades e defender a inversão dessa prioridade em favor das áreas sociais, especialmente as referentes aos direitos sociais, como a saúde.
Além disso, vale lembrar que governo federal fez de tudo para que a base de cálculo de 10% da RCB não fosse aprovada já no advento da discussão da regulamentação da EC 29. Tudo em nome de que não possui uma fonte específica para isso. Agora vem com o mesmo argumento para o Movimento Saúde +10. Embora, é do conhecimento de todos que o Orçamento da Seguridade Social (saúde, previdência e assistência social) vem há anos evidenciando superávits. Mas, grande parte é direcionada ao pagamento de juros da dívida, a fim de manter superávit primário – uma política econômica restritiva em termos de cortes dos gastos sociais, como dissemos. Esse direcionamento tem nome: Desvinculação das Receitas da União (DRU), em que 20% das receitas da seguridade social são dirigidas a outras finalidades. Esse mecanismo vem provocando perdas de recursos para a Seguridade Social de cerca de R$ 578 bilhões, entre 1995 a 2012, tendo sua continuidade assegurada até 2015. Nesse sentido, há fontes disponíveis no governo. O problema é ele aceitar a defesa das entidades vinculadas à reforma sanitária há anos: acabar com a DRU.