Big Pharma: Crise e Acesso a Medicamentos

Reinaldo Guimarães *

 

Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) 

Com financiamento da Fundação Bill e Melinda Gates e dos governos britânico e holandês, foi criada uma ONG que desde 2008 e bienalmente publica um Índice de Acesso a Medicamentos (Access to Medicine Index). Sua missão é monitorar os esforços realizados pelas 20 maiores farmacêuticas globais na direção de ampliar o acesso a medicamentos destinados a 33 alvos (hierarquizados por DALY’s) em 103 países com renda baixa e média-baixa, além de alguns com IDH muito baixo (o Brasil não faz parte da lista)¹. As respostas a questionários preenchidos pelas próprias empresas e auditados por comitês especializados são aplicados a uma matriz que cruza áreas técnicas e pilares estratégicos aos quais são conferidas ponderações.
No relatório de 2012, dentre os achados mais importantes, lê-se:

‘The industry is doing more to improve access to medicine than it was doing in 2010. Seventeen out of the 20 companies saw their scores increase and more companies have joined the ranks of the leaders. … GlaxoSmithKline remains top of the league table, but its lead is shrinking, with two newcomers, Johnson & Johnson and Sanofi, moving into the top three closely behind and more companies joining the ranks of the leaders. The industry as a whole is gradually progressing’.
A crise da Big Pharma e as respostas a ela.

Desde a virada do século, a Big Pharma vive uma crise que já pode ser considerada a maior de toda a sua história. A dimensão e a duração do problema sugerem a existência de múltiplos determinantes, mas há consenso sobre a responsabilidade da crescente rarefação do lançamento de produtos inovadores no mercado. A crise econômica de 2008 agravou as dificuldades e, a despeito de um aumento de registros nos EUA em 2011 e 2012, não é seguro que isso represente uma reversão da tendência da última década e meia.

Essa situação de desconforto tem gerado um conjunto florido de respostas por parte das companhias. A primeira foi uma onda de fusões e aquisições de empresas, cujo objetivo mais importante foi a apropriação, pelas compradoras, dos pipelines (moléculas promissoras) das compradas (Entre 2008 e 2012, foram realizadas 907 operações de fusão/aquisição de empresas farmacêuticas, num valor de US$ 437 bilhões)². A segunda foram mudanças no modelo geral de negócios, cuja essência residiu no refreamento da verticalização nos processos de desenvolvimento e produção, com crescente terceirização. Aqui, o objetivo principal foi o compartilhamento dos riscos. A terceira foi uma mudança de atitude em relação a medicamentos genéricos, que deixaram de ser ‘criminalizados’ pela Big Pharma e vêm sendo crescentemente incluídos nos porta-fólios dessa indústria que se autodenomina ‘de pesquisa’. Do ponto de vista do acesso a medicamentos, poderíamos afirmar que as duas primeiras foram respostas neutras. O armistício em relação aos medicamentos genéricos, pode-se dizer que foi positiva.

Mas há mais respostas à crise. A quarta tem sido o aprofundamento de estratégias políticas no terreno da propriedade intelectual visando fortalecer interesses comerciais, mesmo que em detrimento do interesse público. A quinta tem sido o que se poderia chamar de uma radicalização nas estratégias comerciais. E a sexta resposta, a mais recente, tem procurado contornar os padrões regulatórios em agências com protagonismo mundial, como o FDA nos EUA. Ao contrário das três primeiras, essas respostas agridem frontalmente o acesso a medicamentos a imensos contingentes populacionais no mundo e implicam em importante reparo à citação inicial deste texto.
As estratégias de Propriedade Intelectual.

Essas, de modo geral, se expressam em propostas do tipo Trips-Plus, de facilitação da concessão de patentes em grau ainda maior do que o permitido pelas legislações nacionais (inclusive a nossa, de 1996, já frouxa). Importante frisar que patentes em excesso não só não estimulam a inovação como prejudicam a concorrência, principal ferramenta de diminuição de preços. No Brasil as estratégias atuam em duas direções principais. A primeira é a extensão do período de proteção patentária pela via jurídica mediante argumentos por vezes francamente falaciosos. A segunda, também por via jurídica, é a tentativa de privar a concorrência de dados constantes nos dossiês de medicamentos já registrados.
Infelizmente, no Brasil o órgão governamental de patentes, o Instituto Nacional de Propriedade Industrial vem, nos últimos anos, conciliando com essas manobras, valorizando uma abstrata ‘segurança jurídica’, que seria indispensável para os negócios e colocando em segundo plano a questão do acesso aos medicamentos por quem deles precisa. No plano internacional, vale ainda notar que acordos comerciais bilaterais entre países do hemisfério norte e países em desenvolvimento costumam conter cláusulas que impedem esses últimos de se defender dessas medidas Trips-Plus (por exemplo, o direito de decretar licenciamentos compulsórios).
A Radicalização das Estratégias comerciais.

Aqui, o objetivo é fazer crescer as receitas, missão permanente de qualquer empresa. O problema se coloca quando, para isso, são rompidas fronteiras éticas e criminais. Notícia recente informa que a empresa norte-americana Johnson & Johnson fez acordo com a justiça dos EUA declarando-se culpada de procedimentos pouco éticos de marketing. A multa é de US$ 2,2 bilhões. Há alguns meses, a suíça Novartis foi multada em US$ 3,0 bilhões e a norte-americana Pfizer em US$ 1,3 bilhão, também nos EUA e por razões parecidas. A britânica Glaxo, Smith & Kline está sob pesada investigação na China, por alegada prática de suborno a médicos e hospitais. A gigante israelense de genéricos TEVA está em vias de fazer um acordo com a justiça dos EUA por suspeitar que praticou, em vários países, ações proibidas pela legislação norte-americana. As acusações mais comuns têm sido a comercialização de produtos off-label (vender um medicamento para uma finalidade para a qual ele não tem registro no país), além de suborno.

Fazer uso de medicamentos sem registro ou ter um medicamento receitado por médico que recebeu propina para fazê-lo dispensa comentários. O prejuízo para os usuários desses medicamentos é óbvio.

Lateralmente, é preciso considerar que multas na casa de bilhões de dólares não podem ser ‘naturalizadas’. Tantas grandes e tradicionais empresas condenadas em espaço de tempo relativamente curto também não. Parece tratar-se de uma epidemia. Também é difícil atribuir o problema a ‘desvios’ praticados por empregados, ao arrepio das normas das empresas. E vale indagar se, apesar do tamanho das multas, as receitas auferidas com as estratégias de comercialização antiéticas ou criminosas não estariam a compensar com vantagens os já astronômicos valores das multas. Um exemplo claro do que queremos dizer: o medicamento comercializado fora das regras pela Johnson & Johnson, um antipsicótico, faturou US$ 24 bilhões em vendas mundiais entre 2003 e 2010. Frente a isso, o tamanho da multa (US$ 2,2 bi) muda de significado. Caso o foco da punição seja a proteção dos usuários dos medicamentos, talvez multar a empresa não seja a melhor forma de preveni-las no futuro. A esse respeito, a empresa Astra Zeneca admitiu estar sendo investigada pelas autoridades norte-americanas sobre possíveis ‘correções’ nos resultados de testes fase III de um novo medicamento que, se confirmadas, podem retirá-lo do mercado³. Desde que haja alternativa terapêutica, pode ser um caminho.
A Alteração dos Padrões Regulatórios.

Com o objetivo de fazer chegar mais rapidamente ao mercado novos medicamentos para doenças graves para as quais não há alternativa terapêutica, algumas agências reguladoras instituem atalhos (fast-track) que, entre outros dispositivos, diminuem o tempo e a abrangência dos ensaios clínicos pré-registro (Fase III) com o compromisso dos fabricantes de projetarem reforços nos ensaios pós-lançamento (Fase IV). Esses atalhos são desejáveis e a agência norte-americana FDA os utiliza. Entretanto, recentemente a prestigiosa revista médica JAMA 4 publicou uma pesquisa cujos resultados mostram que vários dentre os medicamentos aos quais foi concedido o fast track em 2008, até 2013 não tinham realizado os estudos pós-comercialização ou eles estavam incompletos ou não foram publicados. A responsabilidade por fazer os estudos é, naturalmente, das empresas fabricantes. Nesse ponto, o próprio relatório 2012 do Index reconhece que ‘Few companies report having robust measures to ensure clinical trials conducted by contractors are safe and ethical, with the majority providing no evidence of exerting real influence over the way their contractors conduct trials’.

Há, decerto, muitas outras questões envolvidas na ampliação do acesso a medicamentos e, dentre elas, destaca-se o papel dos Estados nacionais na pesquisa, no fomento industrial, na regulação e na assistência farmacêutica. Aliás, neste quesito, temos observado passos importantes no Brasil. Mas isso é tema para outro texto.

* Médico e diretor de Propriedade Intelectual da ABIFINA

1 – http://www.accesstomedicineindex.org/
2 – Fierce Pharma, 13 fevereiro 2013. http://www.fiercepharma.com/special-reports/top-biopharma-ma-deals-2012
3 – Fierce Pharma, 5/11/2013. http://www.fiercepharma.com/story/analysts-worst-case-brilinta-probe-feds-force-astrazeneca-bloodthinner-mark/2013-11-05
4 – Thomas J. Moore, Curt D. Furberg – Development Times, Clinical Testing, Postmarket Follow-up, and Safety Risks for the New Drugs Approved by the US Food and Drug Administration. The Class of 2008 – JAMA Intern Med. Published online October 28, 2013. doi:10.1001/jamainternmed.2013.11813