Cebes Debate ‘A luta pela democracia necessariamente passa pela luta do direito ao aborto’

A luta pela democracia necessariamente passa pela luta do direito ao aborto. Essa é uma das conclusões do Cebes Debate, com o tema Perspectivas sobre a legalização do aborto no Brasil, que aconteceu nesse dia 4 de Julho, com transmissão online no canal do Youtube do Cebes. Para Ilana Ambrogi, uma das convidadas do programa, tão urgente quanto um governo comprometido com a saúde das mulheres é a mudança na formação de profissionais de saúde no País sobre o assunto aborto. Ilana é médica de família e comunidade, doutora em bioética, ética aplicada e saúde coletiva (PPGBIOS/Fiocruz) e pesquisadora da Anis – Instituto de Bioética. A diretora do Cebes Ana Costa também participou do debate, assim como o também diretor José Noronha, responsável pela mediação, e a presidenta do Cebes, Lúcia Souto.

Ilana substituiu a convidada Gabriela Rondon, doutora em Direito pela Universidade de Brasília (UnB) e também pesquisadora da Anis. Estava previsto a participação da deputada federal Sâmia Bomfim, mas um imprevisto a impediu que pudesse participar.

Na sua fala de abertura do programa, a presidenta do Cebes, Lúcia Souto, saudou o avanço da legalização do aborto na América Latina, seja pelo legislativo, como no caso da Argentina, ou pelo judiciário, como na Colômbia. Lúcia apontou que, no Brasil, por outro lado, o cenário é de retrocessos.

Dois casos específicos ganharam atenção nas últimas semanas. Um é o da menina de 11 anos que teve o direito ao aborto negado por um tempo por uma Juíza em Santa Catarina – ela conseguiu direito ao procedimento após o caso sair na imprensa – e o outro é do manual do Ministério da Saúde, que quer colocar impeditivos e dificuldades ao acesso ao aborto legal.

Na conversa de pouco mais de uma hora, Ilana e Ana conseguiram passar por alguns dos principais pontos envolvendo o complexo tema no País. Para Ana Costa, a discussão do aborto vai além da questão de mortalidade – o procedimento inseguro é uma das principais causas de morte materna no Brasil – mas também em relação a sequelas psíquicas “justamente pela condição de ilegalidade que pesa sobre a prática nas mulheres“. Segundo Ana, a prática do combate ao aborto vem justamente no sentido de impedir uma maior autonomia para as mulheres.

Ilana trouxe dados de duas Pesquisas Nacionais de Aborto, de 2010 e 2016, da Anis. De acordo com os levantamentos, as mulheres que fazem aborto no Brasil são de todas as classes sociais, grupos sociais, todos em todos os níveis educacionais, com representantes de todas as grandes religiões do país, casadas, solteiras, com e sem filhos. Ilana destacou, no entanto, que há diferenças socioeconômicas e raciais muito importantes: “A maior taxa de realização de aborto está entre as mulheres de baixa escolaridade renda e entre as pretas, pardas e indígenas”. Esses procedimentos acontecem principalmente no Nordeste e Centro-Oeste, “algumas das regiões com menores índices de desenvolvimento humano” do País. Além disso, dados da pesquisa mostram que uma em cada cinco mulheres até os 40 anos no Brasil fez aborto, sendo que 88% delas têm religião. A maioria dessas mulheres (67%) tem filhos. As estimativas apontam que no Brasil acontecem 500 mil abortos por ano.

Ilana achou importante lembrar de uma fala de 2018 da Dra. Maria de Fátima Marinho de Souza, representante do Ministério da Saúde em audiência pública da ADPF 442 – que pede a discriminalização do aborto ao STF – sobre como a decisão de interromper uma gestação não depende da classe social. Diferença é que a taxa de gravidade e mortalidade do procedimento é maior entre classes sociais mais desfavorecidas. Para a pesquisadora da Anis, a “construção moral” sobre o aborto afeta para pior a formação de profissionais de saúde, o que precariza a qualidade do serviço e reduz e disponibilidade de oferta do mesmo. Por conta desses fatores, a maioria desses procedimentos é realizada em capitais de Estados. “Há uma dificuldade enorme de acesso“.

Tanto Ana Costa quanto Ilana defenderam o aborto medicamentoso, com acompanhamento de profissionais de saúde, para evitar complicações e possível internação hospitalar. O uso de ferramentas como a telemedicina também podem ajudar mulheres que procuram pelo procedimento. “Tá no código de ética médica a exigência pelo uso da melhor tecnologia para que o profissional consiga garantir a saúde das pessoas“, lembrou Ilana.

Para Ana Costa, a Atenção Básica tem um papel importante nessa prática e no acesso das mulheres ao aborto medicamentoso. “É um equipamento que está próximo das mulheres ali no território na orientação das mulheres para o aborto medicamentoso de pequena idade gestacional e de baixo risco“. É importante também ter uma “retaguarda” para casos que possam, eventualmente, demandar uma complementação de atendimento hospitalar.

Para as duas uma das tarefas mais urgentes nos próximos anos é tirar o misoprostol da clandestinidade, o que se mostra complicado no cenário político atual. Antes o debate sobre aborto não avançava, mas acontecia. Agora ele é moralizado e excluído da pauta por conta da ação de políticos ultraconservadores. Ana Costa criticou a bancada religiosa que usa discurso “em defesa da família” para impedir o avanço de pautas como aborto “mas não erguem sua voz em defesa da penalização da violência doméstica ou da penalização do estuprador ou da da garantia de segurança alimentar para as famílias“.

Segundo Ana, esses políticos “defendem uma família a partir de um valor que é fundamentalista”. “É a intenção do comando sobre o corpo das mulheres. Então a luta pela legalização do aborto é uma luta contra o patriarcado e contra o racismo”, assinalou Ana, apontando a vitimização das mulheres negras e das mulheres indígenas em casos de abortos clandestinos como exemplo. “Então a luta por democracia tem que se servir do nosso discurso contra o que o patriarcado impôs a toda a cultura, nas instituições dos poderes e das práticas do societárias no País e no Mundo“, observou Ana Costa.

O programa Cebes Debate é apresentado, ao vivo, todas as segundas-feiras, às 17h, no canal do Cebes no YouTube. Assista na íntegra no link ou a seguir: