Posicionamento do Cebes sobre recrutamento de profissionais de saúde brasileiros para a Alemanha

Em junho de 2022, o governo alemão, por meio de sua agência federal de empregos, assinou um contrato com o Conselho Federal de Enfermagem (Cofen), no Brasil, que permite ao país contratar esses profissionais brasileiros. O Cebes e a Associação Alemã de Médicos e Médicas pela Democracia (Association of Democratic Doctors -vdää) lançam nota conjunta sobre a ação: “a mercantilização e a privatização do sistema de saúde (alemão) nos últimos 30 anos resultaram em uma carga de trabalho quase incontrolável que levou muitos profissionais de saúde a deixarem seus empregos”.

Recrutamento de profissionais de saúde brasileiros para a Alemanha

Documento de posicionamento da Associação Alemã de Médicos e Médicas pela Democracia (Association of Democratic Doctors -vdää) (Alemanha) e Centro Brasileiro de Estudos (CEBES)

O Ministro Federal do Trabalho da Alemanha, Hubertus Heil, esteve recentemente em viagem pela América do Sul tentando recrutar profissionais de enfermagem no Brasil para o sistema de saúde alemão. As primeiras declarações de intenção já foram assinadas por ele e seu colega brasileiro Luiz Marinho. A retórica comum, segundo a qual, supostamente todos se beneficiam do recrutamento internacional de profissionais de saúde, carece, em geral, de um olhar crítico sobre quem realmente lucra com tais acordos.

O recrutamento internacional pode ser a solução para a crise de pessoal de saúde na Alemanha?

Tendo em vista as pesadas pressões sobre o sistema de saúde alemão, o recrutamento internacional de trabalhadores qualificados é atualmente apresentado, inquestionavelmente, como a solução para uma crise causada por uma política neoliberal interna implementada na Alemanha. O que não é levado em consideração é, em primeiro lugar, porque tantos profissionais de saúde desistiram de trabalhar em hospitais alemães. O agravamento da crise de pessoal no sistema de saúde alemão está intimamente relacionado a problemas estruturais que existem há muitos anos. A mercantilização e a privatização do sistema de saúde nos últimos 30 anos resultaram em uma carga de trabalho quase incontrolável que levou muitos profissionais de saúde a deixarem seus empregos.

Soluções reais são necessárias para melhorar as condições de trabalho desses profissionais e permitir que cuidem de seus pacientes de forma sustentável. A ideia de que os novos trabalhadores migrantes são gratos por trabalhar nas atuais condições precárias na Alemanha é arrogância neocolonial.

Certamente, a migração voluntária de trabalhadores não deve ser bloqueada por leis de migração restritivas e todos os novos colegas são bem-vindos. No entanto, seu recrutamento não pode ser a solução para os problemas estruturais do sistema de saúde alemão. Em primeiro lugar, todos os profissionais de saúde precisam de boas condições de trabalho na Alemanha – não importa se são recrutados no exterior ou treinados no país.

É evidente que não há transparência no processo de recrutamento por parte do governo alemão, minimizando os desafios que implicam o exercício da prática profissional e a residência em um país com cultura e costumes tão diferentes.

A realidade por trás das grandes promessas

O recrutamento de enfermeiras para a Alemanha é operado por um número crescente de agências de recrutamento privadas, que lucram com as grandes esperanças dos profissionais de saúde estrangeiros treinados. Infelizmente, a realidade de recrutamento e trabalho na Alemanha, muitas vezes, está longe do que essas agências prometem. Algumas agências tentaram repassar os custos das taxas de colocação e cursos de idiomas para profissionais de saúde migrantes. Particularmente controversas, são as cláusulas vinculantes do contrato de trabalho, que obrigam os profissionais contratados a pagar altas multas se rescindirem o contrato de trabalho antes do término de um período mínimo de trabalho. Isso é para garantir que o empregador não corra o risco de arcar com os “custos de investimento” se o profissional decidir mudar de emprego – por exemplo, devido às más condições de trabalho.

Em contradição com algumas das promessas feitas pelas agências, é difícil aprender alemão, o que não pode ser alcançado em algumas semanas ou meses. Para atingir o nível de linguagem exigido, B1, os profissionais terão que investir muito tempo, mas mesmo assim não conseguirão se comunicar sem problemas com pacientes e colegas.

Antes de um profissional ser oficialmente reconhecido como enfermeiro na Alemanha, ele é contratado apenas como ”assistente” / auxiliar de enfermagem, o que significa: muito menor remuneração. O processo de reconhecimento pode levar alguns meses até dois anos. Em consequência, uma enfermeira brasileira com diploma acadêmico trabalhará e será remunerada em um hospital alemão por um tempo considerável como se fora auxiliar de enfermagem.

É necessário reconhecer as diferenças no ensino da enfermagem entre o Brasil e a Alemanha. Enquanto na Alemanha a formação em enfermagem é uma formação técnica em serviço por três anos; no Brasil a formação é em nível universitário de 4 a 5 anos com formação teórica e prática. No entanto, essa formação superior das enfermeiras brasileiras não é reconhecida na Alemanha. As enfermeiras brasileiras recebem um salário inferior à sua qualificação, em um processo neocolonial de exploração do trabalho dos profissionais do Sul Global.

Algumas condições são essenciais para mitigar os desafios da emigração dos enfermeiros, tais como: trabalho decente com condições de trabalho dignas; contratos de trabalho com todos os direitos sociais (seguro social de saúde, previdência social); remuneração compatível com o padrão de vida local; apoio à validação do diploma; garantia de moradia digna próxima ao local de trabalho; apoio linguístico e psicológico durante pelo menos um ano financiado pelo estado ou empregador; garantia de condições seguras desde a origem, na ida e no destino com medidas para prevenir assédio e discriminação de todos os tipos: contra imigrantes, gênero e etnia; lembrando que a força de trabalho da enfermagem brasileira é majoritariamente feminina e negra.

Trabalhadores da saúde no sistema de saúde brasileiro

A afirmação de que no Brasil haveria um excesso de enfermeiros não absorvido no mercado de trabalho é falsa. No Brasil há apenas 0,88 enfermeiros registrados por médico (nos países da OCDE a média é de 2,7 enfermeiros por médico) com grande desigualdade na distribuição de enfermeiros entre as regiões do país. Na Alemanha, segundo a OCDE, existem 12,8 enfermeiros por mil habitantes (Health at a Glance 2022). No Brasil existem apenas 3,3 enfermeiros graduados por mil habitantes (Cofen 2023 http://www.cofen.gov.br/enfermagem-em-numeros). Considerados técnicos de enfermagem e enfermeiros, a proporção é de 10,6 enfermeiros por 1.000 habitantes (menor do que na Alemanha), com importantes desigualdades na disponibilidade de enfermeiros entre os estados. Enquanto no Rio de Janeiro essa proporção é de 16/1.000 habitantes; no Maranhão é de 7/1000. Força de trabalho de saúde desempregada não pode ser interpretada como uma declaração sobre as necessidades da população, e muitas vezes, é principalmente um sinal de subfinanciamento do sistema de saúde.

Nesse contexto, certamente é preciso reconhecer os problemas e as condições de trabalho do enfermeiro no Sistema Único de Saúde (SUS). O SUS, cronicamente subfinanciado, sofreu nos últimos anos com políticas de austeridade draconianas que congelaram os investimentos públicos em saúde por 20 anos. Contratos de trabalho precários com trabalho por tempo determinado; ausência de um plano nacional de carreira; baixos salários e a necessidade de múltiplos empregos – estão entre os múltiplos problemas.

A discussão sobre as condições de trabalho da enfermagem tem sido tema de importantes debates políticos e lutas da categoria. Como resultado das lutas dos profissionais por mais de 30 anos, recentemente foi legislado um piso salarial nacional para profissionais de enfermagem em todo o país. Atualmente o piso salarial está sendo implantado com subsídios federais, no setor público, mas com forte oposição dos setores financeiro e privado de saúde. A Confederação Nacional de Saúde, Hospitais, Estabelecimentos e Serviços, representante do setor privado, recorreu ao Supremo Tribunal Federal para suspender a obrigatoriedade do pagamento do piso, alegando sua inconstitucionalidade.

Ao recrutar profissionais de saúde no Brasil, a Alemanha está lucrando com as más condições de trabalho e do subfinanciamento do SUS.

Outro aspecto que mostra que as vantagens não são mútuas é a economia nos custos de treinamento de enfermeiros que o governo alemão faz com o recrutamento ativo. Os custos de 17 anos de formação de um enfermeiro são financiados pelo povo brasileiro.

Considerando tudo isso, é mais do que questionável que haja benefício para todos no recrutamento internacional de profissionais de saúde do Brasil para a Alemanha. Temos que questionar essa narrativa e lutar por sistemas de saúde fortes que ofereçam boas condições de trabalho aos profissionais de saúde nos dois países e no mundo.

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