Crônica do ódio em tempos de covid-19

retrato dos tempos atuais por Heleno Correia

Hoje tive de sair de casa para comprar alimentos. Desde o início da quarentena mais pesada, foi a primeira vez depois de dez dias que ultrapassei o portão de casa para ir ao mercado e à farmácia. No caminho, subindo o eixo monumental de Brasília, vi que passavam por mim vários carrões com bandeiras do Brasil. Só havia uma procissão de carros que nas lojas têm preço inicial de cem mil reais.

São também cem mil casos de COVID-19 e mais de sete mil mortos e o povo dos carrões embandeirados de vidro escuro quer abrir todo o tipo de comércio sem cobrar do Ministro da Economia e do Banco Central a emissão de bônus para pagar salários de empresas fechadas durante a quarentena.

Triste tempo em que ver bandeiras do meu país me dá náuseas. Na verdade, a cor deles é a cor preta da bandeira dos piratas. O Verde-Amarelo é só para abusar. Estão roubando a bandeira que era patrimônio de uma nação que se formava na democracia e sequestrando as cores que constituíram uma pequena cultura de solidariedade, amizade com os que carregavam as mesmas cores, identidade com quem tocava e ouvia a mesma música, o mesmo cinema, e apreciava a mesma comida. Talvez só seja possível recuperar o orgulho nacional trocando essas cores.

Depois de passarem os carrões, todos de vidros fumê fechados e provavelmente vários blindados, passou um Ford Corcel 1978 repintado de branco como uma geladeira velha, com as rodas empenadas, pneus carecas, vidro de desviar vento nas janelas que não fecham há mais de quarenta anos, e as duas mesmas bandeirinhas do Brasil encimando a carcaça que insiste em rodar. A face do motorista era um retrô de pessoa que vi quando nos anos 70 e 80 poderia ter sido um jovem, e hoje é um idoso.

Pensei no quanto admirei as cores do Brasil quando morei fora do país, e antes que um fascista diga qualquer besteira, saí do país por que fui estudar fora. Não foi um exílio. Deixei o Brasil para voltar mais capacitado a ajudar o povo, pagar os estudos públicos que sempre cursei, e dedicar minha vida profissional a quem pagou para que eu pudesse aprender e ser feliz.

Na minha vida de médico atendi em plantões clínicos e ajudei a encaminhar para as salas de cirurgia muitos bandidos baleados, esfaqueados, trazidos pela polícia numa época em que polícia estava parando de matar qualquer um que encontrasse pelas ruas. A abertura democrática trouxe o alívio para os assassinatos de polícia-e-bandido e quase restituiu um certo respeito pelas pessoas presas depois de subjugadas e feridas.

Os bandidos perigosos tinham uma certa aura de respeito pelos médicos, enfermeiros e auxiliares que lhes prestavam socorro. Os policiais também. Isso entre 1975 e 1982. O país se democratizava e todos desejávamos partir para um futuro melhor.

Hoje, vendo a ignorância contra a saúde pública estimulada por quem tem dinheiro, senti uma coisa revoltante. Não me aceito sentindo ódio por ninguém. Nunca discriminei ninguém para atender, socorrer e cuidar. Nunca desejei saber se o ferido era o agressor ou a vítima. Sempre fui recompensado por essa postura que acredito que os bons profissionais de saúde me ensinaram.

Ontem, assistindo um homem, que disseram chamar-se Renan, de quase dois metros de altura agredir uma estudante de medicina que passava por uma praça onde acontecia uma manifestação de enfermeiros vi a cara do ódio. Vi sua mulher com a cara que assisti em hospitais psiquiátricos e chamávamos de paranoia. Mas eles não são doentes. São pessoas que odeiam. Só têm o ódio para oferecer em sua passagem pelo mundo. A mulher disse que tinha filhos profissionais de saúde. Se isso é verdade seus filhos possivelmente estão em conflito por que devem seguir a ética do cuidado responsável sem discriminação por cor da pele, orientação política, orientação sexual, e classe social. Não é possível a paz em uma família dominada pelo ódio cujos filhos profissionais de saúde são orientados a cuidar dos seus semelhantes.

Esta cena de um “verde-amarelo” agredindo enfermeiros que pedem segurança para trabalhar e recebem de volta cuspe e desejo que de sejam expulsos do país para trabalhar como escravos a 50 dólares por mês me roubou a cor verde-amarela uma vez mais.

Mas, como a esperança é vermelha, o Corcel 78 Branco pode ser o chamado da paz. Só um pobre desinformado, ignorante sobre a natureza do Coronavírus que se transmite por contato social entre pessoas sem sinais e sem sintomas, se daria ao vexame de colocar sua barcaça do tempo em um desfile de remediados que usam salários públicos e vendem para funcionários públicos e “se acham” no direito de pedir para o comércio abrir, contagiar muita gente, matar muito mais, e acham que isso é a felicidade que eles desejam.

Odeiam quem diz que a felicidade não chegará por esse caminho. Como o especulador financeiro que virou ministro da economia, eles odeiam quem pode comer e ter a geladeira cheia ignorando a ignorância deles. Odeiam muito.

O irônico é que eles também odeiam o homem do Corcel 78. E o homem do corcel 78 provavelmente não sabe o que estava fazendo lá. Pode ser que nunca venha a saber se encontrar uma Covid-19 no caminho.

E eu, que fui educado para não odiar, por segundos odiei as cores verde-amarela. Eles roubaram minha bandeira. Eu não quero mais essa bandeira de piratas de cor preta, bandidos que sugam o sangue de outras pessoas. Essa bandeira virou um símbolo ultrapassado que os militares roubaram do povo durante a ditadura 1964-1985 e tinha sido devolvida. Roubaram de novo. Possivelmente minha bandeira nunca mais será verde-amarela, a menos que seja totalmente consertada.

Vocês odeiam. Eu não odeio ninguém. Não reconheço no ódio de vocês nenhum direito. Qualquer pessoa tem os mesmos direitos. Vocês não passarão na frente nas filas de UTI. Não serão adiantados em hospitais públicos quando precisarem. Ficarão reclamando que têm direitos acima dos outros e sabendo que o ódio não garante furar fila. O SUS que vocês combatem sobreviverá ao ódio de vocês. Os profissionais de saúde continuarão não fazendo diferença entre seu ódio e sua ignorância e os direitos do homem do Corcel 78.

E achei ótimo que vocês tenham de ser contidos, levados a andar dentro de seus carrões e ficar na encolha. Se forem fazer esse tipo de manifestação a céu aberto sem a proteção de seus capangas podem se dar mal. Contenham-se. É melhor para sua saúde.

E o homem do Corcel 78 me deu o chamado para a razão. Não será um bando de ladrões ignorantes que vão tomar meu sentimento de pertencer ao povo do Brasil. Não será um bando de gente odienta que tomará meu dever de continuar trabalhando pela vida até que meu último sopro leve embora esta teimosia para longe do ódio de vocês.