Desafios da Saúde vão além de mais recursos públicos

Valor Econômico – 30/11/2011

O aumento dos casos de Aids no país, especialmente entre jovens, exige uma reflexão mais aprofundada dos poderes da República sobre a maneira como está posto o debate sobre a Saúde. Hoje como ontem, o que se discute é como aumentar o volume de recursos, quando o governo federal nem sequer consegue gastar o que tem – e que não é pouca coisa – para financiar o sistema de Saúde.

Agora mesmo a oposição chantageia o governo com a ameaça de só votar a prorrogação da Desvinculação de Receitas da União (DRU) se antes for votado o projeto de regulamentação da Emenda 29, que prevê mais recursos para a Saúde. A bem da verdade não é só a oposição que age assim. Uma boa parcela da base aliada do governo também foi capturada pelo poderoso lobby dos parlamentares ligados à Saúde, talvez o mais influente do Congresso, ao lado da bancada ruralista.

Ainda ontem o governo informou o Senado que estuda uma alternativa para reforçar o caixa da Saúde, a fim de evitar que situação e oposição aprovem um texto que estipula em 10% do Orçamento da União o gasto obrigatório do governo com a Saúde.

Há uma semana, a Comissão de Seguridade Social e Família da Câmara aprovou o relatório final de uma subcomissão que trata da reestruturação do Sistema Único de Saúde (SUS). Num calhamaço de 386 páginas, destaca-se a criação de três novos tributos para financiar a Saúde: um imposto sobre grandes fortunas, o aumento da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) das instituições financeiras e o Imposto sobre Grandes Movimentações Financeiras (IGMF), uma nova versão do “imposto do cheque”, regressivo e de efeitos distorcivos sobre a formação de preços, em boa hora revogado pelo Congresso Nacional.

É difícil sustentar uma demanda por mais dinheiro quando ela vem com a impressão digital do lobby dos donos de hospitais e quando sabe-se que o Ministério da Saúde gasta mal o muito de que já dispõe do Orçamento da União. Pior ainda, quando não consegue ao menos gastar o que tem. Em uma década, de 2000 a 2010, o governo federal deixou de gastar R$ 45,9 bilhões que empenhara do Orçamento para despesas com Saúde, conforme levantamento realizado pelo jornal “O Globo” no Sistema Integrado de Administração Financeira (Siafi), o sistema de acompanhamento da execução orçamentária.

A Emenda 29 passou a vigorar no ano 2000. Ela estabelece um piso de gastos para o setor, mas desde então os recursos destinados à Saúde caíram de 1,76% do Produto Interno Bruto (PIB) para 1,66%, no ano passado. Na área social, a Saúde foi o setor que mais perdeu posição; educação, previdência e assistência social tiveram aumentadas suas participações no bolo. E, em sete desses dez anos, havia a cobrança da CPMF, o que é uma evidência empírica de que a criação de novos tributos específicos não necessariamente aumentariam os gastos com a Saúde e, também, de que os governos podem se valer do novo imposto para reduzir a dotação orçamentária hoje destinada a essa área, fazendo uma simples compensação.

O aumento de casos da Aids em todo o país, à exceção do Sudeste, entre 1998 e 2010, deve servir de alerta. O Brasil já foi elogiado em fóruns internacionais por ter desenvolvido o melhor programa de combate à Aids do mundo. Hoje, a tendência é de alta – os números relativos a 2011 ainda não foram contabilizados, mas as parciais indicam acréscimo em relação ao ano passado. É possível que o governo tenha relaxado na execução do programa? Esse é o bom debate.

Atualmente, as autoridades falam de Aids na época do Carnaval, quando se distribuem camisinhas. Talvez não tenham se dado conta que uma nova geração se formou depois de meados dos anos 1990, época em que a Aids ainda era uma doença temida e letal, quando os soropositivos morriam quase sem assistência. O distanciamento dessa realidade pode explicar o aumento da incidência de casos especialmente entre jovens homossexuais na faixa de 15 anos a 24 anos, que subiu 10,1% no período. Em 2010, para cada dez heterossexuais nessa faixa de idade contaminados, havia 16 homossexuais infectados pelo vírus da Aids. Como se vê, os desafios da Saúde vão muito além dos cifrões que tomam a atenção e a energia dos poderes da República.