Dever do Estado

Por Sylvain Levy*

A Constituição define, no artigo 196, que “a saúde é direito de todos e dever do Estado”. Considerar a saúde direito de todos é condizente com os mais nobres princípios de solidariedade, fraternidade, igualdade e cidadania, além de ser dos mais atualizados paradigmas de legislação social em todo mundo. É uma expressão de inclusão social.

No entanto, o termo “dever do Estado” pode dar a idéia de que as ações de saúde são de responsabilidade exclusiva dos órgãos estatais. Ou seja, uma parte da sentença, “direito de todos”, é inclusiva individualmente e outra, “dever do estado”, é exclusiva institucionalmente.

Essa citação pode contribuir para que os entes privados, principalmente aqueles sem relação com o poder público – que não tenham contratos de prestação de serviços com o Sistema Único de Saúde (hospitais, por exemplo), que não exerçam atividades de saúde suplementar por disposição do governo (operadoras de seguro saúde etc.) ou que não sejam conveniadas com órgãos públicos (ONGs, OSCs, associações, sindicatos e outros), se sintam desobrigados de atuar visando “à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação [da saúde]”, conforme o mesmo artigo 196.

Evitando, desde o início, confundir Estado com governo, o texto constitucional amplia o conceito de participação, porém deixa a critério da interpretação de cada um o que é dever e o que é obrigação. É claro que a discussão pode ajudar a esclarecer as normas do Estado para a atuação por injunção (determinação, obrigação, imposição) e disposição (acomodação, arrumação). Os que se sentem desobrigados acreditam que devem cumprir as obrigações claramente estabelecidas pelo governo (as injunções).

Para esses, e para uma grande maioria, o dever passa a ser matéria de foro íntimo. Não jogar papel no chão e sim numa lixeira é dever ou obrigação? Não está listado em nenhuma lei, mas o senso comum nos faz procurar uma lixeira para a deposição do papel refugado. Essas atitudes, individuais, encontram respaldo nas disposições, muitas não escritas em normas mas divulgadas em campanhas de comunicação social por órgãos governamentais.

Outra questão envolvendo o dever do Estado é a discussão, que tem se tornado permanente nos tribunais, sobre os limites e funções desse “dever de garantir” a saúde por parte do Estado.

Ao estabelecer que o direito à saúde preconiza o “acesso universal e igualitário” e o “atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais”, a Constituição Federal mais do que definiu, delimitou o alcance do dever do Estado, que não pode ser utilizado em benefício de alguns em detrimento da maioria. É necessário o uso do senso comum para evitar-se que o atendimento a uma única pessoa comprometa a atenção de toda ou de maior parcela da comunidade. O dístico “de cada um de acordo com sua possibilidade e a cada um de acordo com sua necessidade” deve ser entendido como orientador e não como obrigatório no atual estágio de desenvolvimento econômico e social do Brasil.

Infelizmente, muitos estados e municípios não possuem uma promotoria especializada em assuntos de saúde, como ocorre em Brasília, onde existem não uma mas duas: a Promotoria de Justiça de Defesa da Saúde e a Promotoria de Justiça Criminal de Defesa dos Usuários de Serviços de Saúde. Desse modo, os juízes podem buscar orientações com maior segurança nos campo da legislação e jurisprudência do direito, da medicina, da sociologia, entre outros. Não simplesmente sentenciar à prisão um administrador da saúde ou a uma instituição que compromete, em determinadas situações, grande parte de seu já minguado orçamento para atender a uma demanda que algumas vezes não tem base científica ou técnica.

As demandas administrativas ou judiciais sobre questões de saúde necessitam ser examinadas sob as óticas dos direitos individuais e coletivos, assim como as exigências de cumprimentos dos deveres precisam guardar as dimensões públicas ou privadas, já que todas as ações devem ser referenciadas como estatais. É evidente que muito maior que o SUS é a saúde. Compete aos órgãos governamentais difundir esse conceito. Compete aos governos esclarecer, diuturnamente, que Estado é permanente e o governo, transitório. Esclarecer que a idéia de nação é maior que a concepção de Estado.

Nação deve ser considerada como estado de espírito, onde todos contribuem para o bem-comum. Saúde como dever de Estado deve ser compreendida, também, como dever de todos, como dever da nação.

(*) Sylvain Levy é médico sanitarista e psicanalista. Artigo publicado no Correio Braziliense, na edição de 15/10/08.