Direitos universais: pilar da verdadeira democracia

Jose-NoronhaO diretor do Cebes e Coordenador Adjunto da Alames, José Carvalho de Noronha, fala sobre a manutenção e construção de sistemas universais de saúde, dentro de um processo amplo de desenvolvimento econômico e consolidação da cidadania na América Latina. Na entrevista, Noronha trata dos temas e discussões que deverão estar na pauta do seminário “Cobertura Universal de Saúde: caminhos para a construção de sistemas de saúde universais e equitativos”, que a Alames promoverá no dia 1 de outubro já dentro do 2º Congresso Brasileiro de Política, Planejamento e Gestão, da Abrasco.

Cebes – Como a conjuntura da saúde no Brasil deve aparecer nas palestras, debates e discussões do seminário?

José Noronha: O Brasil deve aparecer como uma democracia em construção em um país que busca desenvolver-se garantindo a seus cidadãos bem-estar e justiça social. Como um país que buscar afirmar sua inserção soberana e solidária no cenário internacional. Que, nos últimos anos, vem ampliando direitos e oportunidades às camadas menos favorecidas da nação. Que, competindo com interesses econômicos e políticos hegemônicos nacional e internacionalmente, vem de maneira regular e sistemática reduzindo as iniquidades sociais e econômicas, traduzida, no campo de suas expressões na saúde, pela queda da mortalidade infantil, aumento da longevidade e pela melhoria do acesso aos serviços de saúde. Mas também, como um país que se vê acossado pelos interesses sociais e econômicos de suas elites políticas e econômicas que lutam por ampliar seu acesso a recursos fiscais e patrimoniais do Estado. Como um país que ao tempo que construiu um dos maiores sistemas de saúde de cuidados universais de saúde do mundo, abriu um dos maiores mercados de negócios de saúde para sua parcela de população melhor situada política, social e economicamente.

Cebes – A concepção de sistemas integrais e universais de saúde remetem a conceitos e ideias socialistas. Como viabilizar sistemas robustos e consolidar o direito à saúde em países capitalistas, em que a força do mercado compra de tudo e transforma cidadãos em meros consumidores?

JN: Sistemas universais e equitativos foram construídos na Europa Ocidental após a 2ª guerra mundial em países capitalistas que têm demonstrado resiliência mesmo diante da crise financeira que assola o Continente desde 2008. Transformaram-se em direitos introjetados na população daqueles países. Não estão imunes aos ataques agressivos de capitais especulativos nem às políticas de cortes de gastos sociais em curso, mas têm provocado manifestações públicas e políticas em sua defesa. A resistência civil e a luta por melhoria do acesso e da qualidade dos serviços recebidos em sociedades democráticas abrem caminho para a construção de maiorias eleitorais para as quais o direito à saúde, e a incompatibilidade de sua obtenção no mercado para a grande maioria da população, se torna central. Não se compra saúde como se compram automóveis. Embora a disputa permaneça aberta, e frequentemente desfavorável, há espaço pra a reafirmação e ampliação de direitos.

Cebes – Depois do tsunami neoliberal dos anos 1990 em toda a América Latina, quais são os principais desafios a serem enfrentados para a manutenção e/ou construção de sistemas públicos universais de saúde no nosso continente?

JN: O principal desafio consiste em vencer a apropriação de recursos fiscais pela burguesia rentista de nossos países. As transferências de renda para ela através do pagamento de juros e encargos das dívidas públicas de nossos países tem comprometido seriamente a capacidade de financiar políticas sociais inclusivas. O segundo grande desafio é romper a captura pelo grande capital da política e dos meios de comunicação de massa. A luta diuturna dos governos de corte popular que se instalaram em nosso continente em defesa dos interesses das grandes maiores populares e a conspiração em uníssono dos grandes jornais e cadeias de rádio e televisão é gigantesca, mas tem demonstrado capacidade de resistência. O terceiro, não menos importante, é a segmentação das coberturas através de apropriação de recursos fiscais por regimes privados de organização e prestação de serviços de saúde, que privilegiam as camadas de maior renda de nossos países. Isto tem levado ao subfinaciamento do setor público e o fortalecimento de interesses corporativos de profissionais de saúde associados ao uso de serviços de alta complexidade tecnológica e alto custo, contribuindo para o aumento das iniquidades.

Cebes – Até que ponto a construção e manutenção de sistemas universais de saúde na América Latina depende de decisões políticas e conjuntura macroeconômicas favoráveis? O posicionamento de diversos governos à esquerda no espectro político ajuda na garantia de saúde como direito?

JN: Certamente existe essa dependência. Nossos países ainda precisam se desenvolver e retirar grandes contingentes populacionais da pobreza. Sabemos e declaramos a toda hora que a saúde de um povo decorre essencialmente de sua situação social, econômica, política e ambiental. A recente onda de governos populares na América Latina tem favorecido o progresso dessas condições visíveis em indicadores sociais. É verdade que alguns desses governos não têm colocado as políticas de acesso e uso universal e equitativo de seus sistemas de saúde com a centralidade que muitos dos militantes de movimentos democráticos de reforma sanitária desejariam, embora reconheçam a saúde como direito essencial de seus cidadãos.

Cebes – “Ninguém” é declaradamente contra saúde universal, integral e de qualidade. Entretanto, na prática, sabemos que isso é uma hipocrisia. Afinal, existem diferentes formas de se posicionar contrário a um sistema universal de saúde. Quais são as formas mais comuns de ser contrário a sistemas universais e onde estão os principais inimigos da saúde como direito?

JN: O problema está menos na “hipocrisia”, que sempre acaba por se desmascarar, e mais na deformação de conceitos e uso oportunistas dos termos. Esse é o centro do que estaremos discutindo no Encontro da ALAMES. Desde 2005 que a Organização Mundial de Saúde vem utilizando de forma equivocada e deturpada a expressão e conceito de Cobertura Universal de Saúde, dissociando-os das ideias conexas de acesso e uso equitativos e de qualidade comparável, e vinculando-os primariamente às barreiras financeiras. Uma série de publicações recentes da OMS, particularmente os Relatórios Mundiais de Saúde de 2010 e 2013, têm explorado esses caminhos, que também se expressaram em várias publicações da revista inglesa The Lancet. Avançam na ideia de abertura ou ampliação de coberturas através seja de sobretaxação das camadas mais pobres não cobertas por sistemas previdenciários, como o seguro popular mexicano, seja por mecanismos de expansão de formas privadas de asseguramento fortemente estratificadas para camadas de renda média ou baixa, como a que a toda hora tenta se impor no Brasil.