Diretora do CEBES comenta texto de José Dirceu: “Privatizar também a saúde”?

OPINIÃO: Saúde Pública e eleições

Abaixo o artigo de José Dirceu e o comentário de Lenaura Lobato.

Em texto publicado no Jornal O Globo, o ex-chefe da casa civil sugere, entre outras coisas, a criação de um plano público de saúde para concorrer com os privados. “Nosso problema não é a falta de concorrência no setor privado, mas a falta de um setor público forte, eficiente e que garanta a saúde como direito humano e de cidadania”, alerta Lenaura Lobato.

PRIVATIZAR TAMBÉM A SAÚDE?
José Dirceu (Jornal O Globo, 14/06/2010)

Está cada dia mais patente, em todas as áreas, a inconsistência do que quer a oposição para o Brasil. Do presidente do PSDB, que disse que acabaria com o PAC (Plano de Aceleração do Crescimento), aos economistas tucanos que estão preocupados com o ritmo do crescimento e da geração de empregos, está faltando criatividade à oposição. Sem projetos sólidos, recorrem sempre à mesma artimanha: atacam as propostas de continuidade do governo Lula e fingem que sabem fazer, mas acabam por não apresentar algo congruente.
O mais recente artífice dessa prática é o ex-auxiliar de José Serra no Ministério da Saúde e atual secretário da Saúde da Prefeitura de São Paulo, Januário Montone. O tema é o favorito do marketing de Serra, ex-ministro de Fernando Henrique Cardoso. Mas, apesar de difundir que a Saúde é questão central de seu programa, Serra ainda não explicou o que quer fazer.
Por trás do discurso do que fez na gestão FHC, Serra esconde seus reais objetivos. No dia 4 deste mês, neste mesmo O GLOBO, Montone deu as pistas do que quer a oposição: a terceirização do SUS (Sistema Único de Saúde). De fato, é o que Serra fez em São Paulo. Terceirizou hospitais e outros equipamentos públicos por meio das OSS (organizações sociais da saúde).
O SUS é uma das principais conquistas da Constituição de 1988. Ao defender a terceirização como saída economicamente mais rentável, os tucanos repetem o discurso neoliberal que justificou as privatizações. Uma ideia temerária, porque trata a Saúde não como política pública, mas de forma contábil. Ademais, a oposição atuou para derrubar a CPMF, que permitia injetar R$15 bilhões por ano no setor.
Se a discussão é sobre recursos aplicados, Serra precisa explicar por que, como governador paulista, desrespeitou a emenda constitucional 29, que fixa gastos mínimos na Saúde. Só em 2007, primeiro ano de gestão, R$1,1 bilhão obrigatórios à Saúde foi destinado a outros fins. Será que é porque a alocação menor de verba ajuda a sustentar o discurso contábil e a justificar a terceirização?
No que tange ao debate de fato preocupado com o aperfeiçoamento da regulação e do controle por parte do Estado dos planos de saúde, O GLOBO publicou, em janeiro, excelente diagnóstico da doutora em Saúde Pública Lígia Bahia, sobre as fragilidades do modelo pretendido por Serra e Montone. A principal é a resistência em ressarcir o SUS quando os usuários dos planos usam o sistema público. Os pagamentos só são feitos quando ocorrem internações eletivas aprovadas pelos planos. Nos demais casos, como cirurgias e emergências, o Estado é quem arca com os custos. Ou seja, quem paga por plano da saúde dá lucros às operadoras enquanto o prejuízo é da população que depende do SUS. O governo federal tem adotado, via ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar), medidas para garantir os ressarcimentos, mas as operadoras transformam a questão em batalhas judiciais.
Uma das alternativas para fortalecer a regulação seria transformar o Geap (Fundação de Seguridade Social) em um plano público para concorrer com os privados. Criada em 1945 para atender ao funcionalismo e que atualmente assiste cerca de 700 mil pessoas, a seguradora funcionaria como um modelo de gestão e atendimento ao público, forçando a iniciativa privada a melhorar os serviços.
É preciso um esforço para melhorar a saúde suplementar e evitar que os recursos públicos sirvam para subsidiar a iniciativa privada. O Ministério da Saúde possui uma política correta de ampliação da rede de atenção básica. O programa Saúde da Família é tratado com prioridade e as UPAs (Unidades do Pronto-Atendimento) proliferam com rapidez pelo Brasil. Também estão corretas as iniciativas para melhorar a gestão hospitalar e toda a rede de média e alta complexidade. O caminho deve ser o de melhorar as condições de atendimento pelo Estado, não o da privatização de serviços essenciais.

JOSÉ DIRCEU foi chefe da Casa Civil da Presidência da República.

LENAURA LOBATO COMENTA:

“A experiência internacional já provou várias vezes que a saúde é melhor e mais barata onde há sistemas universais e públicos”.

O artigo de José Dirceu acerta ao defender o SUS e criticar as iniciativas do governo de São Paulo, que tem repassado ao setor privado os serviços de saúde que deveriam ser prestados pelo poder público. Mas erra ao defender a criação de um plano público para “concorrer” com os privados. De que estamos falando afinal? Nosso problema não é a falta de concorrência no setor privado, mas sim a falta de um setor público forte, eficiente e que garanta a saúde como direito humano e de cidadania. A experiência internacional já provou várias vezes que a saúde é melhor e mais barata onde há sistemas universais e públicos. E nisso o governo Lula vai acabar em débito. E não à toa a saúde é a principal bandeira da oposição.
Não adianta só defender a emenda 29, ou as UPAS. A emenda 29 é uma excelente alternativa, mas não vai resolver sozinha os problemas. Os gastos públicos em saúde hoje estão muito abaixo daqueles dos países com sistemas similares. Precisamos de mais dinheiro; dinheiro público, proveniente dos impostos que a população paga para que o Estado preste serviços de qualidade aos seus cidadãos.
Já as Upas, estas têm sido alardeadas como solução, mas ninguém está querendo ver que os problemas que ela veio aplacar estão se reproduzindo com ela, porque não temos atenção básica eficaz, rede de serviços suficiente e estruturada nos municípios e regiões.
O PT, e a candidatura Dilma, precisam ouvir não só os setores sindicais, que defendem o SUS, mas querem todos planos de saúde pra suas corporações. Precisam ouvir mais os movimentos sociais independentes, os sanitaristas e especialistas de fato comprometidos com a saúde pública e universal e com o SUS. O SUS precisa entrar nas plataformas não com algumas medidas de gestão e maior aporte de recursos. Precisa entrar como fator de desenvolvimento e de cidadania. Não há sociedade desenvolvida e democrática com a saúde que temos hoje. Se o objetivo é fazer um Estado forte e focado no desenvolvimento, a saúde é prato cheio. Precisamos de um ‘pré-sal’ pra saúde brasileira: compromisso público, estado forte e foco no futuro!!
O SUS está pronto, do ponto de vista organizacional, para assumir essa tarefa. Os candidatos vão ganhar se decidirem enfrentar o desafio de fazer o SUS pra valer. Pra isso, é preciso enfrentar os interesses privados que estão cada vez mais disseminados no interior do sistema, com a conivência daqueles que deveriam defendê-lo, e assumir seu caráter púbico. Não vamos andar pra trás e ampliar os planos privados. Os Estados Unidos estão aí pra provar que isso não dá certo!

LENAURA LOBATO – Diretora do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes)