Duas visões sobre o Piso Único para Saúde e Educação

Coluna do jornal Zero Hora publicado dias 9 e 10 de novembro de 2019

Uma das propostas mais controversas no pacote enviado pelo governo federal ao Congresso é a de juntar as duas áreas para o estabelecimento do percentual mínimo que precisa ser aplicado pelo poder público

Uma medida oportuna
por Darcy Francisco Carvalho dos Santos, economista

O Brasil passa por uma transição demográfica, com acentuado envelhecimento da população, seja pela base, em decorrência da grande queda da taxa de fecundidade, seja pelo topo, devido ao aumento da longevidade. Segundo o IBGE (2013), a população de zero a 19 anos decrescerá de 61 milhões em 2020 para menos de 39 milhões em 2060, passando de 29% para 18% da população total. No mesmo período, a população com 60 ou mais anos passará por processo inverso, indo de 29 milhões para 73,5 milhões, num aumento de 44 milhões de pessoas, passando de 14% para 34% da população. O total de pessoas com 80 anos ou mais aumentará quase quatro vezes, indo de 4 milhões para 15 milhões.

Uma realidade com tamanha transformação não pode ser tratada com regras fixas. Daí a importância da proposta de administrar conjuntamente os limites de recursos destinados à educação e à saúde. Mas, para isso, deve ser criado um regulador para evitar que as demandas da saúde, mais urgentes, deixem a educação sem recursos. Isso, no entanto, não poderá ser feito na maioria dos municípios, devido aos encargos previdenciários. O mesmo ocorre com o Estado do RS, que os inclui no cômputo da despesa de manutenção e desenvolvimento do ensino, alcançando em 2018 o índice de 27,3% do parâmetro constitucional, mas seria multo menor que o índice oficial de 25% se os citados encargos não fossem incluídos.

E aqui reside um grande impasse, uma escolha de Sofia. Ou se considera a despesa previdenciária no cômputo do índice citado, com graves prejuízo à educação, ou se deixa fora dele e inviabiliza o orçamento total. Na educação estadual, a despesa com inativos alcança 62% da folha e, se considerarmos somente o plano de carreira, esse percentual passa de 70%, ou seja, para cada R$ 100 pagos a quem está em atividade, são pagos R$ 250 entre aposentadorias e pensões.

Uma realidade com tamanha transformação não pode ser tratada com regras fixas

As mudanças aprovadas pela última reforma previdenciária, se estendidas a Estados e municípios, contribuirão para a solução desse problema, mas tal solução será parcial e levará tempo. A existência da restrição orçamentária do governo, devido à limitação da capacidade contributiva da população, fato geralmente negligenciado, não pode ser ignorado e, por isso, precisamos nos adaptar às situações cambiantes. A medida proposta é importante e oportuna, mas precisam ser observados os aspectos citados.

A unificação é inconstitucional
por Élida Graziane Pinto, Procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo e professora da Fundação Getulio Vargas (FGV)

A unificação dos pisos em saúde e educação é promessa falsa de aprimorar sua gestão orçamentária. O que se almeja é deduzir no cômputo de um o que se gasta excedentemente no outro. No limite, o gestor poderia até zerar o gasto educacional para aplicar de forma supostamente prioritária na saúde da população cada vez mais idosa.

Esse jogo de soma zero é inconstitucional e ilusório. Os pisos não só são individuais como também há a garantia de que sejam concursados os professores, o que estabiliza a despesa obrigatória com pessoal ativo da educação, à luz do art. 206, V, da CF.

São serviços públicos essenciais que não devem ser descontinuados

Por outro lado, é inadmissível reduzir proporcionalmente carga horária e salário dos servidores da educação e saúde nos Estados e municípios em crise fiscal. São serviços públicos essenciais, que não devem ser descontinuados, nem restringidos com o cômputo de inativos nos pisos. Fraudes contábeis não podem acobertar crimes de responsabilidade de alguns prefeitos e governadores.

Mesmo os argumentos de transição demográfica e envelhecimento populacional não se sustentam, diante do déficit de 7 milhões de vagas em creches e da pífia oferta de ensino em horário integral. Tampouco há valorização remuneratória docente efetiva, na forma do art. 206, VIII, da CF. É mesquinho, portanto, falar que há dinheiro sobrando na educação básica obrigatória brasileira, quando chegamos à metade da vigência do PNE com descumprimento de 70% de suas metas e estratégias.

Faltam equipes de saúde da família, mas políticos querem liberdade para gastar mais com hospitais de pequeno porte, por meio de emendas parlamentares desatentas ao planejamento sanitário. O quadro é agravado com demandas judiciais de caráter individual alheias à pactuação federativa que ordena o SUS.

Saúde e educação são subfinanciadas pela União e impera uma guerra fiscal de despesas na federação. Ao invés de esvaziar os pisos, é preciso fortalecer o planejamento setorial de cada área, bem como resguardar que os recursos do fundo social do pré-sal sejam, de fato, fontes adicionais de custeio, diferentemente do que pretende a PEC 188/2019.

Fomentar uma disputa fratricida entre saúde e educação apenas atende ao curto prazo eleitoral de quem deseja inaugurar placas a título de “investimento”. O custo dessa escolha é a destruição da garantia de custeio estável e progressivo dos mais nucleares direitos sociais inscritos em nossa Constituição cidadã.

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