Editorial da Saúde em Debate v. 47 n. 138 aborda a 17a Conferência Nacional de Saúde

O editorial da Saúde em Debate volume 47, número 183, aborda a 17a Conferência Nacional de Saúde e como ela é importante “como instrumento de mobilização pelo direito à saúde e de engendrar as grandes questões de seu tempo na discussão política”. O texto, escrito por três integrantes do Cebes – Matheus Zuliane Falcão, Itamar Lages, Jamilli Silva Santos – aborda também o papel do Cebes na construção de Conferências Livres de Saúde, que culminou na Conferência Livre e Democrática de Saúde “O Brasil e a Saúde que Queremos“, que culminou em diretrizes e propostas para ajudar no debate da 17a. Veja a seguir o editorial.

17ª: uma Conferência comprometida com a Democracia e a Saúde

por Matheus Zuliane Falcão1, Itamar Lages1, Jamilli Silva Santos, integrantes do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes) – Rio de Janeiro (RJ), Brasil.

A 17ª CONFERÊNCIA NACIONAL DE SAÚDE (CNS), realizada no período de 2 a 5 de julho de 2023, foi mais um “ato de invenção da democracia”1 no Brasil. A CNS segue representando os desafios e o potencial que carrega um dos mais antigos lemas da Reforma Sanitária Brasileira (RSB) e que permeia a criação do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes): Saúde é Democracia e Democracia é Saúde.

As Conferências Nacionais de Saúde surgiram como instrumento de planejamento do Estado ainda em 1941. Ali, sua composição refletia a perspectiva tecnocrática e vertical da ideia de saúde: uma reunião formada essencialmente por especialistas da saúde pública, em sua larga maioria médicos, que definiriam as diretrizes dos grandes programas do Estado brasileiro para o setor, com especial enfoque ao campo das doenças infectocontagiosas, a que a saúde pública era então restrita.

Esse modelo apenas seria alterado com uma nova concepção política de saúde, que emergiu na sociedade brasileira, a partir dos anos 1970, quando movimentos de base, academia, trabalhadores e gestores se uniram para questionar o conceito vertical e tecnocrático da saúde e pensá-la como algo que envolve diferentes campos da vida e que deve ser tratado de forma política. Esse movimento, chamado RSB, teve seu ápice na 8ª CNS, em 1986, e resiste até hoje.

A proposta da RSB apresentada em 19792, ainda no contexto da ditadura, contribuiu para a 8ª CNS, na qual o segmento das pessoas usuárias dos serviços públicos de saúde, representadas por múltiplas organizações populares e sindicais, esteve presente e constituiu a metade do quantitativo total da delegação, cujas propostas foram sistematizadas em um pequeno e muito potente relatório com três temas: saúde como direito, reformulação do sistema nacional de saúde e financiamento.

Da 8ª CNS, saíram resultados políticos importantes, como a Emenda Sanitária, que foi incorporada pela Assembleia Nacional Constituinte à nova Constituição de 1988, dando origem ao capítulo da saúde, que reconheceu a saúde enquanto direito e criou o Sistema Único de Saúde (SUS). Entretanto, mais do que simplesmente por seus resultados, a 8ª CNS também pode ser compreendida por seu processo.

Pela primeira vez na história da saúde brasileira, milhares de pessoas de todos os cantos do País se mobilizaram unicamente para discutir que saúde queremos e qual modelo de sistema de saúde é mais adequado para tal. Mais do que simplesmente ampliar o interesse na discussão, a 8ª CNS rompeu o modelo tecnocrático e foi resultado do anseio popular por afirmar seu direito à saúde.

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Seu eco bem expressa que o projeto da RSB não é simplesmente um projeto de reforma administrativa, mas sim um projeto político de reconfigurar a relação entre Estado e sociedade e de abrir caminhos para mudanças estruturais em favor do bem comum. Por essa razão, essa mesma reforma jamais pode ser tomada como projeto acabado, e espaços como Conferências, jamais como instâncias que finalizam em si próprias.

As Conferências refletem um dos elementos centrais do espírito da Reforma Sanitária: o papel da democracia no projeto de afirmação do direito à saúde, a partir da construção de uma “consciência sanitária” e da mudança nas condições de vida e na situação de saúde da população brasileira, configurando, assim, o que Arouca denominou como um “projeto civilizatório”3(35–42). Fala-se, aqui, em uma ideia democrática que vai muito além das instâncias liberais de democracia representativa e que compreende a real possibilidade de as pessoas definirem seu destino coletivo e, aqui neste caso, determinar os rumos de sua saúde, inclusive o que se entende por saúde.

Marilena Chaui1 ilustra essa ideia de democracia enquanto um ato de subversão, uma constante luta por mais direitos, que devem ser arrancados da realidade política. Assim, a força das Conferências não está simplesmente em seu caráter formal, mas sim em sua capacidade de servir como instrumento de mobilização pelo direito à saúde e de engendrar as grandes questões de seu tempo na discussão política.

Realizada entre os dias 2 e 5 de julho de 2023, a 17ª CNS cumpriu esse papel. Enquanto primeira edição da CNS após a derrota eleitoral do conservadorismo que ocupou o executivo federal desde 2016, a 17ª CNS compreendeu, antes de tudo, um espaço de confraternização e congraçamento pela retomada da direcionalidade da política nacional de saúde e do Estado brasileiro em uma perspectiva democrática.

Como destaca Fleury4, a presença de 4 mil delegados eleitos em suas diversas etapas preliminares fez da 17ª CNS a “conferência da diversidade”4, que reuniu um fenômeno em dimensões e em diversidade, colorindo corredores e salas com cocares, vestimentas afro-religiosas, profissionais e conselheiros envoltos em bandeiras de estados e municípios, além da expressiva participação de pessoas com deficiência, travestis e transgêneros4.

Há que se pontuar, ainda, que a 17ª CNS demarcou o apoio dos diversos atores sociais da saúde, nela reunidos, à gestão da ministra Nísia Trindade, diante das notícias veiculadas acerca da suposta negociação da pasta em meio ao jogo de interesses político-partidários.

A importância da 17ª CNS pode ser evidenciada ainda por meio de outros dois aspectos. Primeiro, como destaca Fidelis5, pelo amplo processo de mobilização popular que ela envolveu, iniciado ainda em 2021, no dia 5 de outubro, data em que a Constituição Federal completou 33 anos, e, ainda não finalizado, se considerarmos a reverberação dos debates que propiciou, bem como a divulgação dos primeiros documentos com a sistematização de suas proposições6 e confecção do seu relatório final.

O referido processo compreendeu a realização de 27 Conferências Estaduais e do Distrito Federal, no que compete às instâncias formais municipais e estaduais do Controle Social no SUS, e, pela primeira vez, acolheu também a contribuição direta da sociedade civil, que enviou proposições e indicou delegados por meio das 99 Conferências Livres Nacionais, organizadas por segmentos de usuários, categorias profissionais, pesquisadores e movimentos sociais espalhados pelo País.

Nesse ponto, não podemos deixar de pontuar a atuação do Cebes, que, exercendo seu protagonismo como entidade orgânica do movimento sanitário, segue cumprindo seu compromisso com a defesa da RSB, tendo contribuído para a 17ª CNS seja na sua organização, enquanto entidade membro do CNS, seja no seu processo de mobilização e formulação política mediante a realização de sua Conferência Livre Nacional, com o tema ‘O Brasil e a Saúde que queremos!’ inspirado pelo documento em que lançou as bases do projeto da RSB e do SUS2. Em sua Conferência Livre, o Cebes propôs um documento preliminar7, composto de elementos da sua Tese, discussões atuais e reflexões coletivas, que foi apreciado e discutido em nove conferências livres locais realizadas pelos seus núcleos espalhados pelas diversas regiões do País, nas quais foram acolhidas contribuições que serão consolidadas em uma versão final, além de diretrizes e propostas que foram encaminhadas para a etapa nacional da 17ª CNS.

Um segundo ponto sobre a importância da 17ª CNS diz respeito às condições de possibilidade de sua efetiva capacidade de incidência nos rumos da Política Nacional de Saúde nos próximos anos. Tendo em vista, sobretudo, a complexa conjuntura política da saúde atual, após a destruição operacionalizada durante seis longos anos de governos antidemocráticos, o próximo Plano Nacional de Saúde (PNS) não pode desconsiderar, mais do que nunca, os múltiplos desafios a serem enfrentados para a implementação de um projeto de reconstrução do SUS e de reorientação da Política Nacional de Saúde e demais políticas públicas para a efetivação dos direitos sociais.

Assim, coerente com a trajetória de ação política que vem desenvolvendo ao longo dos últimos anos em face da crise sanitária, o Conselho Nacional de Saúde demonstrou estar comprometido para que as proposições da 17ª CNS efetivamente incidam no processo democrático e constitucional de formulação da política nacional de saúde, ao passo que adiantou a data de sua realização e já publicou, em tempo exíguo, resolução com orientações estratégicas para o Plano Plurianual (PPA) e para o PNS 2024-2027, formuladas a partir das diretrizes aprovadas na 17ª CNS e das prioridades para as ações e serviços públicos de saúde6.

Ademais, a 17ª CNS nos convida, ainda, a refletir sobre o que Fleury4 denominou como “predominância do debate sobre pautas identitárias”, ao problematizar a substituição da noção de igualdade pela de equidade. Nesse particular, também alinhado ao compromisso crítico-reflexivo ao qual também se vincula, como a autora, o Cebes optou por provocar e enfatizar, nos debates do processo de mobilização de sua Conferência Livre Nacional, a reflexão e a proposição de mudanças estruturantes do Estado e das políticas sociais e econômicas, que incidissem sobre a determinação social e econômica da saúde, em sua dimensão mais ampla. Assim, na votação das diretrizes e propostas a serem priorizadas para a 17ª CNS, o Cebes estimulou que os participantes considerassem como critério na priorização aquelas que pudessem intervir mais diretamente sobre os desafios centrais da organização do nosso Estado e sociedade, tendo em vista que o “horizonte democrático e socialista que define, organiza e orienta o Cebes” compreende as “lutas por uma condição saudável de vida”, as quais “incluem todos os movimentos de luta contra as opressões e a exploração material”8(31–32). Portanto, a entidade reconhece e valida a pertinência das pautas identitárias, mas, tal como Fleury4, reflete sobre a necessidade de não perder de vista a igualdade como um valor intrínseco à noção de direito, que é o esteio de uma sociedade democrática.

Diante dos desafios que se impõem à efetivação do direito à saúde no Brasil e da democracia, mesmo após a derrota do negacionismo nas urnas, faz-se necessário potencializar espaços de mobilização e participação social, além daqueles formalmente já constituídos, com vistas ao aprofundamento das discussões em torno dos desafios que afetam a realização de direitos. Temas como financiamento do SUS e de outras políticas essenciais para o enfrentamento das desigualdades estruturais na sociedade brasileira, privatização e inclusão de pautas emergentes, como o uso da inteligência artificial no campo da saúde, precisam estar incluídos na agenda da RSB.

Referências

  1. Chaui M. Cultura e democracia. Crítica y Emancipación. 2008 [acesso em 2023 ago 3]; 1(1):53-76. Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile. php/4657030/mod_resource/content/1/Chaui%20 Cultura%20e%20Democracia.pdf.
  2. Centro Brasileiro de Estudos de Saúde. A questão democrática na área da saúde. Documento apresentado pelo Cebes no 1º Simpósio sobre Política Nacional de Saúde na Câmara Federal em outubro de 1979. Saúde debate. 1980; 9:11-3.
  3. Arouca AS. Democracia é saúde. In: Anais da 8ª Conferência Nacional de Saúde; 1986; Brasília. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 1986. p. 35-42.
  4. Fleury S. Construir o Amanhã hoje – Desafios enfrentados pela 17ª Conferência Nacional de Saúde. Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz Antonio Ivo de Carvalho. 6 jul 2023. [acesso em 2023 ago 3]. Disponível em: https://cee.fiocruz.br/?q=construir–o-Amanh%C3%A3-hoje-Desafios-enfrentados-pela-17-Conferencia-Nacional-de-Saude-por-Sonia–Fleury.
  5. Fidelis C. Entrevista. Observatório de Análise Política em Saúde. 2023 jul. [acesso em 2023 ago 3]. Disponível em: https://api.observatorio.analisepoliticaemsau-de.org/media/interviews/78424e6b-e847-4774-9353-7009051c49e4/pdfs/entrevista-oaps-jul23.pdf.
  6. Brasil. Ministério da Saúde, Conselho Nacional de Saúde. Resolução nº 715, de 20 de julho de 2023. Dispõe sobre as orientações estratégicas para o Plano Plurianual e para o Plano Nacional de Saúde provenientes da 17ª Conferência Nacional de Saúde e sobre as prioridades para as ações e serviços públicos de saúde aprovadas pelo Conselho Nacional de Saúde. [acesso em 2023 ago 3]. Disponível em: https://conselho.saude.gov. br/images/Resolucoes/2023corrigidas/Reso715_-_ Disp%C3%B5e_sobre_orienta%C3%A7%C3%B5es_ estrat%C3%A9gicas_da_17%C2%AA_CNS_para_o_ PPA_e_PNS.pdf
  7. Centro Brasileiro de Estudos de Saúde. Conferência Livre do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde. O Brasil e a saúde que queremos! Documento preliminar; 2023.
  8. Centro Brasileiro de Estudos de Saúde. Tese 2021-2022. Por um mundo multilateral: por nova hegemonia geopolítica global, civilização x barbárie. Rio de Janeiro: Centro Brasileiro de Estudos de Saúde; 2021. [acesso em 2022 jan 10]. Disponível em: https://cebes.org.br/tese-2021-22-cebes-reafirma-a–luta-civilizacao-contra-barbarie/28043/