Apresentação da Saúde em Debate v. 46 n. especial 2 aborda a luta contra os agrotóxicos e a necessidade da agroecologia

Com o tema “Saúde, agrotóxicos e agroecologia”, 2a edição especial de 2022, a revista Saúde em Debate busca ajudar na reflexão entre esses temas e a saúde coletiva. Como apontam editores convidados Guilherme Franco Netto, Aline do Monte Gurgel e André Campos Burigo a proposta da publicação é “aprofundar a compreensão de abordagens teóricas, práticas e epistemológicas mais críticas voltadas para o fortalecimento da agroecologia e a redução das nocividades dos agrotóxicos para a saúde, o ambiente e a sociedade“.

Contribuições para um debate estratégico na saúde coletiva: da luta contra os agrotóxicos à necessidade de maior envolvimento no campo agroecológico

Guilherme Franco Netto1,2, Aline do Monte Gurgel3, André Campos Burigo1,4

  1. Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Vice-Presidência de Ambiente, Atenção e Promoção da Saúde (VPAAPS) – Rio de Janeiro (RJ), Brasil. guilherme.franco.netto@ gmail.com
  2. Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), Grupo Temático Saúde e Ambiente (GT Saúde e Ambiente) – Rio de Janeiro (RJ), Brasil.
  3. Fundação Oswaldo Cruz, Instituto Aggeu Magalhães (IAM) – Recife (PE), Brasil.
  4. Associação Brasileira de Agroecologia (ABA), Grupos de Trabalho (GT) – Rio de Janeiro (RJ), Brasil.

BEM-VINDOS E BEM-VINDAS A ESTE NÚMERO ESPECIAL DA ‘SAÚDE EM DEBATE’ que tem como tema ‘Saúde, Agrotóxicos e Agroecologia’ e que foi construído para contribuir com um debate estratégico, direcionado para aprofundar a compreensão de abordagens teóricas, práticas e epistemológicas mais críticas voltadas para o fortalecimento da agroecologia e a redução das nocividades dos agrotóxicos para a saúde, o ambiente e a sociedade. Buscou-se refletir sobre a relação entre esses elementos e o campo da saúde coletiva, na perspectiva de promover uma transição em direção a sistemas alimentares que propiciem justiça socioambiental, segurança e soberania alimentar e nutricional, territórios sustentáveis e a saúde.

O aprofundamento da crise estrutural do capital revela uma ‘crise civilizatória e planetária’, que se materializa na ampliação das iniquidades sociais, com concentração de renda, aumento da miséria e da fome; e na destruição dos ecossistemas, deteriorando a saúde das populações. No centro dessa crise, está o modo de produção hegemônico do agronegócio, dependente do uso de insumos químicos, da exploração ambiental e da força de trabalho, reprodutor de sementes transgênicas e que pressiona para o enfraquecimento de normativas voltadas à proteção do ambiente e da saúde humana.

Como consequência, o Brasil tem vivenciado um período de retrocessos, com redução dos direitos sociais e de proteção ambiental, conquistados por meio de lutas históricas, que culminaram com a Constituição de 1988. A profunda crise econômica, social, ambiental, sanitária e ética na qual o País está inserido ameaça a democracia e é agravada, a partir de 2020, com a pandemia de Covid-19, que foi utilizada como uma ‘oportunidade para passar a boiada’ para reduzir ainda mais a atuação do Estado na proteção social, do meio ambiente e da saúde humana.

Como resultados imediatos, observam-se o desmonte do sistema de regulação de agrotóxicos e a liberação acelerada dessas substâncias, incluindo produtos obsoletos no mercado nacional; a fragilização dos sistemas de monitoramento e fiscalização1; o desmantelo de políticas públicas de incentivo à agroecologia e à produção orgânica; a desestruturação dos canais de participação da sociedade civil nas políticas públicas; o aumento exponencial do desmatamento e das queimadas; a deslegitimação do conhecimento científico e a perseguição de pesquisadores; o corte do financiamento do Sistema Único de Saúde; e a militarização do Ministério da Saúde.

Os impactos desse modelo de produção não se distribuem de forma equânime nos territórios, afetando de forma mais severa os camponeses e os povos e comunidades tradicionais, que estão sobre forte ataque pela contaminação das águas, solos e ar, perda da biodiversidade, tentativas de legalizar a grilagem de terras e adoecimentos e mortes relacionadas com a exposição aos agrotóxicos. Os biomas brasileiros estão em acelerado processo de devastação.

Destacamos, a título de exemplo, sistematizações e análises de dados que apontam para o ecocídio dos cerrados2, bioma central de nosso País, e a inédita recomendação que o Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU) recebeu – em períodos considerados democráticos – de abrir investigação sobre o governo brasileiro sobre violação de direitos humanos e crimes ambientais. O informe apresentado, sobre visita oficial ao Brasil, em dezembro de 2019, do relator especial da ONU para direitos humanos, conclui que o País se afasta da solidariedade internacional, apresenta um conjunto de retrocessos referentes aos direitos humanos que requerem atenção urgente e que se a situação não for controlada, a possível catástrofe nacional poderá avançar para uma tragédia regional e global fenomenal, com a destruição do clima3.

Os custos do ataque às garantias de proteção social, ambiental e da saúde, à ordem jurídica e ao Estado Social são elevados, tanto para a saúde quanto para o ambiente; e a busca de outros modos de produção e de relações com a natureza que reduzam o impacto desse modelo se coloca como urgente e necessária na sociedade contemporânea.

Parte-se da premissa de que não é possível conceber a precarização de direitos conquistados, materializados em legislações mais protetivas para a saúde e para o ambiente, considerando–se o princípio da proibição do retrocesso social, pressuposto básico para a existência de um Estado Democrático de Direito.

Isso revela a importância atual do conjunto de experiências da agrobiodiversidade, que crescentemente se articula em redes em torno do movimento agroecológico para a saúde da população e do planeta, mas que também ensina sobre formas diversas de estar no mundo, de se relacionar com a natureza, solidárias e inclusivas, alternativas concretas para superação dos paradigmas enfrentados pela humanidade.

No momento que esta revista é publicada, passaram-se dois anos e seis meses desde o início da pandemia de Covid-19, que atinge a humanidade no contexto de reconhecimento de uma sindemia global de fome, de sobrepeso e obesidade e das mudanças climáticas4 por guardarem relação de causa com o sistema alimentar neoliberal, que expressam as consequências da referida crise estrutural e são intensificadas pela pandemia causada pelo Sars-CoV-2. Não há vacina contra a fome ou para as mudanças climáticas, a superação dessas graves crises passa, necessariamente, por uma transição radical e rápida de sistemas (agro)alimentares. É isso o que concluem relatórios internacionais produzidos por dezenas ou centenas de especialistas do mundo sobre segurança alimentar e nutricional, mudanças climáticas, biodiversidade e serviços ecossistêmicos publicados nos últimos anos5. O enfoque agroecológico vem ganhando destaque em alguns desses relatórios, graças ao avanço da produção de conhecimentos, para a qual o campo da saúde tem muito a contribuir6.

É nesse cenário de ameaças e resistências que este número especial sobre ‘Saúde, Agrotóxicos e Agroecologia’ está inserido, buscando estimular a produção e a disseminação de conhecimentos sobre o papel da saúde coletiva na luta contra os agrotóxicos e contra um modelo de agricultura adoecedor. Busca também pensar como o campo da saúde coletiva pode contribuir para a construção da agroecologia enquanto um enfoque técnico-científico coerente com um conjunto de práticas em resistência, em um movimento político civilizatório para enfrentar os desafios atuais.

Os trabalhos presentes neste número especial abrangem tanto reflexões e abordagens críticas às categorias, epistemologias e práticas que conformam a atividade científica quanto ao envolvimento do campo da saúde coletiva nessas temáticas. Estas têm se dedicado a analisar os aspectos conjunturais que impulsionam esse modelo de produção, bem como a revelar os impactos dos agrotóxicos para a saúde e para o ambiente, envidando esforços crescentes voltados à formulação de políticas públicas mais protetivas, bem como de experiências territoriais promotoras do direito humano à alimentação adequada e voltadas à promoção emancipatória da saúde.

Consideramos que os objetivos propostos para esta edição da ‘Saúde em Debate’ foram alcançados. Com a composição de 38 textos, que envolvem o esforço de dezenas de pesquisadores/as de diversas instituições, esta revista contribui para compreender o lugar do Brasil e da América Latina no sistema alimentar global e seus diferentes efeitos sobre a saúde, em diferentes escalas. Outrossim, contribui também por causa de conceitos e métodos utilizados. Amplia-se significativamente o acesso a artigos que refletem sobre temas pouco tratados ou até inéditos em revistas da saúde coletiva. Ressalta-se a relevância de estabelecimento de pontes e convergências entre a saúde coletiva e a agroecologia, compreendida nas suas dimensões epistemológicas, teóricas, conceituais, metodológicas e práticas. Desejamos que, de diferentes formas, este trabalho fortaleça as aproximações entre os campos da saúde e da agroecologia.

Referências

  1. Gurgel AM, Guedes CA, Friedrich K. Flexibilização da regulação de agrotóxicos enquanto oportunidade para a (necro)política brasileira: avanços do agronegócio e retrocessos para a saúde e o ambiente. Desenv. Meio Amb. 2021 [acesso em 2022 jun 2]; 57(esp):135-159. Disponível em: https://revistas.ufpr.br/made/article/view/79158.
  2. Egger DS, Rigotto RM, Lima FANS, et al. Ecocídio nos Cerrados: agronegócio, espoliação das águas e contaminação por agrotóxicos. Desenv. Meio Amb. 2021 [acesso em 2022 jun 2]; 57(esp):16-54. Disponível em: https://revistas.ufpr.br/made/article/view/76212.
  3. Organização das Nações Unidas. Conselho de Direitos Humanos. Visit to Brazil. Report of the Special Rapporteur on the implications for human rights of the environmentally sound management and disposal of hazardous substances and wastes, Mr Baskut Tuncak, on his mission to Brazil. 2020. [acesso em 2022 maio 31]. Disponível em: https://www.ohchr.org/EN/Issues/Environment/ToxicWastes/Pages/ Visits.aspx.
  4. Burigo AC, Porto MF. Agenda 2030, saúde e sistemas alimentares em tempos de sindemia: da vulnerabilização à transformação necessária. Ciênc. Saúde Colet. 2021 [acesso em 2022 jun 2]; 26(10):4411-24. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csc/a/ p36TMkBKMZqnkxD7WXcfbxx/abstract/?lang=pt.
  5. Swinburn BA, Kraak VI, Allender S, et al. The Global Syndemic of Obesity, Undernutrition, and Climate Change: The Lancet Commission report. The Lancet. 2019; 393(10173):791-846.
  6. O’Rourke ME, DeLonge MS, Salvador R. Insights from agroecology and a critical next step: integrating human health. Agroecol. Sust. Food Syst. 2017 [acesso em 2020 fev 21]; 41(7):880-884. Disponível em: https://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080 /21683565.2017.1326073.