Federação em causa

Correio Braziliense – 31/01/2012

Reforma de gestão é benéfica, mas o governo cresceu muito para dar conta de tudo que assumiu

Insatisfeita com várias áreas da administração, a presidente Dilma Rousseff decidiu voltar a centralizar na Casa Civil, tal como era em seu tempo na pasta, a supervisão dos programas federais, como as obras de infraestrutura do PAC e as políticas sociais, e acelerar a implantação de um sistema de monitoramento on-line em tempo real dos resultados das ações dos ministérios e das principais autarquias.

Com indicadores atualizados, o que leva à criação de processos que alimentem o fluxo de informações, havendo quem o controle (papel da Casa Civil reforçada) e sanções pelo desvio desmotivado de metas, é crível esperar alguma melhora. Já o resultado “revolucionário” que ela anunciou na reunião ministerial da última segunda-feira é menos certo. Não por sua culpa. O governo é que ficou grande demais.

Hoje, o que se tem é a União cuidando da construção de creches, do investimento em casas populares, e chamado pelos estados a resolver conflitos de ocupação urbana — todas as áreas de responsabilidade, segundo a Constituição, das administrações estaduais e municipais.

Ao governo federal, prioritário seria cuidar da macroeconomia, das políticas de desenvolvimento regional, incentivar a criação de novas tecnologias, gerir as relações externas, vigiar pela qualidade da educação e da atenção à saúde, sem necessariamente ter de pegar na unha tais responsabilidades e executá-las diretamente.

Passou a cuidar de tudo isso por pressão da sociedade, resultado da desatenção dos governos dos estados e dos municípios com as suas obrigações constitucionais. Mas não bem por desídia ou inépcia.

Devido a distorções que datam, contraditoriamente, da época em que o gasto público era pecado, o governo federal centralizou a arrecadação de tributos disfarçados de contribuições para não ter de rateá-los com os estados e municípios. Além disso, introduziu-se a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), avanço para a administração pública no país, mas com imperfeições que só têm se agravado.

A autonomia cerceada
Como diz o ex-ministro e professor da Fundação Dom Cabral Paulo Paiva, dos poucos que atentam para as questões federativas, a LRF estabeleceu “rígidos critérios” para estados e municípios quanto à gestão das receitas, ao grau de endividamento e ao comprometimento com despesas de pessoal. “Mas ao longo dos anos”, diz, “a autonomia dos estados para gerir suas finanças tem diminuído”. A concentração das receitas tributárias na União é um dos motivos. Tem muito mais.

A renegociação das dívidas estaduais no governo FHC, sequelas, em grande parte, do resgate dos bancos dos estados falidos, implicou a transferência pelos estados à União de até 13% da receita líquida.

E a isonomia ferida
Como o saldo devedor cresce em média a 6% acima da inflação, diz ele, “no fim da próxima década em alguns estados haverá uma dívida impagável, se não houver nova renegociação”. De outro lado, emenda Paiva, é crescente a vinculação do gasto dos estados e municípios imposto por legislação federal. E isso dissociado de outro preceito constitucional: a isonomia. Ela já não é seguida quanto ao ditame da LRF de que os estados não podem alocar mais que 49% da receita líquida em gasto com pessoal. Agora, com a regulamentação da Emenda nº 29, que aumentou o percentual da receita fiscal destinado à saúde, a presidente vetou — “ferindo o princípio da isonomia”, diz Paiva — a extensão dessa obrigatoriedade à União.

Constituição ignorada
É de se considerar até se o Congresso atende a Constituição ao se imiscuir em questões claramente atribuídas aos estados, tal como se fez com o piso salarial dos professores, demanda justa tanto quanto a dos policiais, ainda não votada. Mas ela atropela a autonomia dos estados. E, mais grave, equaliza situações desiguais, pois a saúde e a educação no Norte, por exemplo, têm necessidades diferentes das do Sul e do Sudeste. O viés antifederativo deveria ter sido desmontado depois de superada a fase do ajuste fiscal, entre os governos FHC e Lula. A presidente seria poupada de ser cobrada como prefeita.

O patrão de prefeitos
Para garantir a estabilidade política, segundo o professor da Dom Cabral, “urge restabelecer a autonomia e a isonomia federativas”. É um dos problemas. Dele deriva outro, do qual nem governo nem Congresso já conseguem dar conta: o crescimento do gasto fiscal, sobretudo de seu custeio, já que redundantes, de responsabilidade dos municípios e estados e, cada vez mais, da União. A questão tem implicações que transcendem as sequelas econômicas, mas ninguém a debate, acomodado com o status quo. Até que, talvez, o governo federal seja cobrado a cuidar de guarda municipal e de fonte luminosa. É esse o viés.