Gestão de riscos ou crônica da morte anunciada

Sonia Fleury

Na primeira semana de Abril os moradores do Rio de Janeiro acordaram com a cidade alagada, muitos deles sem ter conseguido chegar a suas casas desde a noite anterior. Faltou luz em vários bairros do Rio e Niterói, como conseqüência faltou água, os telefones e celulares deixaram de funcionar com as baterias descarregadas, os ônibus e outros meios de transporte coletivo pararam de funcionar. Esse cenário de caos urbano que se assemelhava a um terrível filme de ficção transformou-se de imediato em um filme de terror quando começaram a circular as informações e imagens de inúmeras pessoas que foram soterradas sob os escombros de suas casas, em baixo de toneladas de lama e do lixo sobre o qual haviam construído suas habitações. Não se tratava de barracos de madeira ou zinco que foram soterrados, mas sim de casas de alvenaria, ruas, creches, igrejas, um bairro, muitas vidas.

A tragédia do Morro do Bumba em Niterói, onde um bairro fora construído sobre um antigo lixão deixou muitas vítimas fatais, inúmeras pessoas desabrigadas e muitos traumatizados. Em menor escala, o mesmo ocorreu em São Gonçalo e em outras partes do Rio de Janeiro, como no Morro dos Prazeres em Santa Teresa, na Rocinha, no Alemão. Posteriormente, as chuvas fizeram estragos semelhantes em vários estados do Nordeste.

A população seguiu com admiração e compaixão o trabalho heróico dos bombeiros, que buscava atenuar os danos da tragédia sobre uma população desamparada que assistira a seus entes queridos, vizinhos, amigos e estórias de vida serem tragados pela lama e pelo lixo.

Algumas instituições tiveram seu trabalho criticado como a defesa civil, outras se mobilizaram para prestar atendimentos jurídicos ou sanitários aos desabrigados, autoridades governamentais estiveram presentes em alguns casos embora demonstrando sua perplexidade diante da situação enquanto outras ou se ausentaram ou demonstraram sua total inépcia para o exercício da autoridade pública em prol da comunidade. A sociedade organizada que em décadas anteriores conseguira mobilizar milhares de pessoas em campanhas como o combate à fome não demonstrou a mesma capacidade de dar uma resposta organizada ao caos que se instaurou na cidade.

Restou a solidariedade individual de milhares de cidadãos, que mesmo temendo a volta da chuva, a corrupção e o desvio de doações, a ignorância e a quase total ausência de orientação sobre como melhor ajudar naquele momento, arregaçaram suas mangas e decidiram agir da melhor forma que puderam. Mesmo com o apoio dos meios de comunicação, que conseguiram ir além do espetáculo do horror, fornecendo informações sobre vias bloqueadas e outras de igual relevância, não havia um comando central que organizasse esse trabalho de formigas da população solidarizada com as vítimas, canalizando as múltiplas formas de ajuda para os locais mais adequados. Havia postos de coleta de donativos, mas não se sabia como uma pessoa poderia trabalhar como voluntário, cuidando de crianças e idosos, por exemplo.

Passados alguns dias do ocorrido, a vida vai voltando ao normal: fala-se cada vez menos na situação dos desabrigados, algumas medidas estão sendo divulgadas como a construção de um novo bairro em Triagem que abrigará os desabrigados do Rio de Janeiro enquanto outros, no Rio e em Niterói, passaram a receber aluguéis sociais. Estas medidas louváveis não foram objeto de um planejamento anterior, portanto não se sabe seu impacto, por exemplo, sobre o mercado de imóveis populares, nem mesmo qual seria a dimensão deste mercado e a sua capacidade de absorver esta população. Por outro lado, nem todos já foram contemplados com estas medidas e sabe-se que algumas pessoas começam a voltar a suas casas que estão condenadas, enquanto outras continuam instaladas em abrigos precários e sem saber o que será feito de suas vidas.

Este episódio reascendeu o debate sobre a remoção versus urbanização de favelas. Alguns estudiosos chegaram a usar o exemplo do bem que fez a remoção da Favela do Pinto na Lagoa, o que permitiu a valorização dos imóveis nesta área nobre da cidade.
No entanto, diferentemente dos debates anteriores, por primeira vez a discussão se encaminhou para a questão central que diz respeito não à remoção, mas à realocação das pessoas removidas.

Este fato mostra a evolução da política pública no tratamento do tema das favelas, depois da Constituição Federal de 1988. Da preocupação básica com a erradicação das manchas representadas pelas favelas em prol da saúde urbana, a política pública passou a partir da década de 90 a se voltar para a busca dos meios de inserção destas comunidades na rede urbana da cidade. A associação entre os territórios de ocupação
irregular com a ausência do poder público e o domínio da coerção dos traficantes ou milicianos e a percepção da ameaça que este fato representava, cada dia mais, para o conjunto do tecido social urbano marcou os rumos da política recente. Maiores investimentos urbanos e sociais foram destinados às favelas, associados à ocupação destes territórios com unidades policiais pacificadoras. As favelas e periferias deixavam, progressivamente, de ser o espaço da política miúda, da troca de favores representada pelos votos em um vereador em busca de alguma melhoria para a comunidade, para entrar na agenda política governamental como prioridade.

Não se pode negar a evolução do tratamento da questão das favelas nesta trajetória, desde a remoção por meios coercitivos até a busca da urbanização e integração destes territórios à cidade, o que só pode ser viabilizado pela presença do Estado como poder público que se exerce de forma igualitária tanto no asfalto quanto na favela. Por esta razão, a tentativa imediata de mero retorno à política de remoção foi fortemente repudiada por estudiosos e movimentos sociais.

No entanto, a gravidade da situação mostrou que não se pode tolerar a omissão do poder público que permite a construção de bairros urbanizados em cima de lixões ou a construção de habitações em situações de alto risco. Foi preciso uma calamidade como esta para alertar os governantes sobre suas responsabilidades com relação à garantia de uma vida com dignidade nas cidades. Mas, ainda é preciso ir além da visão esquemática da falsa polarização proposta neste debate e assumir a complexidade do planejamento urbano, que não apenas envolve a decisão sobre urbanização ou remoção de favelas, mas deve ser acompanhado de políticas habitacionais de acesso à<