No Brasil, sobram bens de consumo, mas falta serviço público básico
Valor Econômico – 19/10/2012
Nos últimos dez anos, o ganho de renda dos brasileiros proporcionado pela política de valorização do salário mínimo e pelo aumento do número de trabalhadores com carteira assinada elevou o poder de compra da população. Esses fatores, associados também à forte expansão do crédito no período, tornaram o Brasil o oitavo maior mercado consumidor entre 142 países pesquisados, segundo o Fórum Econômico Mundial, e levaram a presença de televisores e geladeiras a superar 96% dos domicílios brasileiros, alcançando 98,7% no caso dos fogões, aproximando assim a presença de algumas comodidades nas casas brasileiras a de países desenvolvidos.
Por outro lado, a oferta de serviços básicos, dependente principalmente de investimentos públicos, alcança porcentagens bastante inferiores da população, embora também tenha avançado na última década. O acesso ao saneamento básico, por exemplo, chega a apenas 55,8% dos domicílios e 31,1% ainda não têm pavimentação na rua, de acordo com dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (Pnad) e da Pesquisa de Orçamentos Familiares 2008-2009 (POF), do IBGE.
Para o diretor de estudos sociais do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), Rafael Osório, o aumento real de salários com redução da desigualdade de renda permitiu avanços nos indicadores que dependem principalmente da renda das famílias. Entre 2001 e 2011, segundo o IBGE, o rendimento médio mensal do trabalho avançou 16%, já descontada a inflação do período. Essa variação foi bem mais expressiva para as faixas de menor renda. Segundo levantamento da Fundação Getulio Vargas (FGV) com base na Pnad, nos últimos dez anos o ganho real de renda dos 50% mais pobres da população foi de 68%.
Já o crédito total praticamente dobrou no mesmo período, ao deixar a casa de 25% do Produto Interno Bruto (PIB) em 2002 e saltar para 51% em agosto deste ano. Essa evolução, segundo Osório, permitiu avanços dos índices relacionados à posse de bens duráveis pelas famílias. Ele nota também que as condições de moradia melhoraram, com aumento da proporção das habitações próprias e redução de mais de dez pontos na quantidade de domicílios com quatro ou mais pessoas. “Avançou rapidamente tudo o que dependia mais diretamente da evolução da renda das famílias”, diz ele, o que explica a aproximação com países desenvolvidos, como os Estados Unidos. Segundo a Pnad, em 2011, 98,7% das habitações possuíam fogão e 96,3% contavam com geladeira, avanços em relação ao números de 2001, indicadores semelhantes aos vistos nos Estados Unidos, onde 99% dos domicílios possuem o “kit-cozinha” completo, formado ainda por uma pia com água encanada, além desses dois itens.
O crescimento da formalização no mercado de trabalho também beneficiou esse cenário, segundo Rodrigo Leandro de Moura, pesquisador da FGV. Entre 2003 a 2011, a expansão dos empregados com carteira assinada foi de 48,1%, diante de um crescimento do total dos ocupados de 21,3% no período. Moura acredita que os incentivos do governo, como reduções temporárias de IPI, também colaboraram para esse cenário, além da queda dos preços, favorecida pela entrada da China no mercado global como grande produtor de manufaturados. Assim, mesmo itens antes praticamente inacessíveis, como computador com acesso à internet, mostraram rápida evolução nos últimos anos. Em 2011, 37,1% dos domicílios possuíam essa facilidade, quatro vezes mais do que há uma década.
No entanto, segundo o IBGE, 60,3% das casas têm rede de abastecimento de água e coleta de lixo e esgoto, além de iluminação elétrica. De acordo com o censo da população americana, em 2011 apenas 0,6% das casas não contavam com água encanada, chuveiro e vaso sanitário com descarga.
A área em que o governo teve mais sucesso no objetivo de universalizar os serviços básicos foi em iluminação elétrica, com 99,3% das casas atendidas.
Para Osório, do Ipea, é surpreendente o avanço nessa área porque o índice de cobertura já era alto há dez anos (96%). Claudio Teles, presidente do Instituto Acende Brasil, lembra que o esforço pela universalização desse serviço data de mais de uma década, com ações do governo federal como o Luz no Campo, criado no governo de Fernando Henrique Cardoso.
Teles afirma, no entanto, que houve reforço importante com o programa Luz para Todos, principalmente na redução de disparidades regionais. Lançado em 2003 pelo governo federal, o programa tinha como meta acabar com a exclusão elétrica no país e canalizou, segundo o presidente do Acende Brasil, “recursos vultosos para estender as redes para regiões cada vez mais distantes”.
O Nordeste, que hoje conta com 98,8% das habitações com acesso à iluminação elétrica, foi a região em que o avanço foi mais acelerado nos últimos dez anos. Em 2001, essa era a única região com um índice inferior a 95% de atendimento pelo serviço, com apenas 89% dos domicílios atendidos pela rede.
O preço desse salto nos últimos dez anos, segundo Teles, não foi desprezível. Dependendo da região do Brasil, diz ele, o custo da ligação de uma residência em região afastada pode chegar a R$ 20 mil. Hoje, diz, o programa como um todo demanda menos recursos, o que inclusive permitiu que a Conta de Desenvolvimento Energético (CDE), um dos encargos que incidem sobre a conta de luz e financiam o Luz para Todos, fosse reduzida em 75% a partir de 2013.
Para Édison Carlos, presidente executivo do Instituto Trata Brasil, o mesmo êxito não foi obtido pelo saneamento básico por uma questão de centralização, já que as ações são de competência da administração municipal, e não federal, como acontece com outros serviços públicos que tiveram avanços mais significativos no período.
Segundo ele, a questão mais relevante hoje para este segmento, e que emperra os projetos de saneamento, não é a falta de recursos, mas de projetos, um diagnóstico comum entre especialistas em relação a outras áreas, como transportes. A baixa execução orçamentária da pasta levou o governo federal a adotar como solução a concessão de rodovias e ferrovias à iniciativa privada, o que também deve ser feito com portos.
Carlos afirma que as prefeituras já caminharam nessa direção, por meio de parcerias público-privadas ou sistemas mistos de gestão.
Osório, do Ipea, assim como Carlos, não acredita que a solução seja federalizar o serviço, já que o município é protagonista fundamental para que as políticas voltadas para essa área produzam resultado, pois conhecem demandas e especificidades da região. O ideal, diz, é que os governos estaduais e federal consigam exercer função de coordenação, mas sem transferência de competências. Outra vez aparece aqui o diagnóstico de que não faltam recursos, e sim projetos, para que as políticas de avanço da cobertura de saneamento produzam resultados mais velozes.