O inferno astral da big pharma
Reinaldo Guimarães*
Em nível global, e a despeito de sua histórica lucratividade, a Big Pharma vive uma crise importante desde a última década do século passado. Seu principal indicador (e determinante) é a diminuição do número de registros de moléculas realmente inovadoras nos principais mercados. A resposta a essa situação de desconforto tem se orientado em quatro direções principais. A primeira é a onda de fusões e aquisições de empresas, cujo objetivo mais importante é a concentração e o adensamento dos pipelines. A segunda são mudanças no modelo geral de negócios, cuja essência reside no refreamento da verticalização nos processos de desenvolvimento e produção, com crescente terceirização. Aqui, o objetivo principal é o compartilhamento do risco. A terceira foi uma mudança de atitude em relação a medicamentos genéricos, que deixaram de ser “criminalizados” e vêm sendo crescentemente incluídos nos seus porta-fólios. E a quarta direção é o que se poderia chamar de uma radicalização nas estratégias comerciais, cujas práticas cegaram a atingir as fronteiras da ética e mesmo da legalidade, o que atestam os inúmeros acordos judiciais e mesmo condenações recentes celebrados entre farmacêuticas de grande prestígio e a justiça dos Estados Unidos, da Europa e, mais recentemente, da China e da Índia. Os acordos e as condenações envolvem particularmente acusações de distribuição de propinas para agentes de saúde comprar ou receitar seus produtos e a prática de comercialização off-label (uso do produto em condições clínicas não chanceladas pela autoridade sanitária). Dentre as multas, surpreende a de três bilhões de dólares pelo exercício de práticas comerciais ilegais realizadas pela empresa Glaxo Smith Kline na década passada. A maioria das grandes firmas, tais como Johnson & Johnson, Pfizer, Wyeth, Abbott e Novartis, têm sido alvo dessas ações.
É claro que a punição das empresas em decorrência dessas ações antiéticas são bem vindas. Entretanto, analistas observam que o terreno pecuniário talvez não seja 100% eficaz para prevenir novas fraudes, haja vista os valores das multas estarem muito abaixo das receitas auferidas com a comercialização de alguns desses medicamentos.
No que se refere ao Brasil, por enquanto não há notícias de que essas práticas tenham chegado aos tribunais, muito embora a prescrição off-label pareça ser fato comum. Para dar um exemplo fora do estrito campo médico, em sua edição de 7 de setembro de 2011, a revista VEJA colocou como matéria de capa a “prescrição” de um antidiabético (Victoza)da empresa dinamarquesa Novo Nordisk para uso não autorizado pela Anvisa (emagrecimento).
Entre nós, a estratégia da radicalização comercial procura tensionar o arcabouço jurídico da proteção à propriedade intelectual, supostamente harmonizado pelos acordos TRIPS de 1994 e pela sua complementação de 2001, que instituiu devidas flexibilidades para garantias no âmbito da saúde pública. Em paralelo às estarrecedoras concessões antinacionais feitas pela Lei de Propriedade Intelectual brasileira de 1996, e às notórias insuficiências operacionais e equívocos políticos do nosso Instituto Nacional de Propriedade Industrial,esse movimentovem se expressando por crescente litigância jurídica em torno ao que se poderia denominar de uma “normatização TRIPS-PLUS caso-a-caso”. Por parte das empresas, as demandas judiciais mais frequentes correm nos trilhos de estratégias de evergreening(extensão temporal) de patentes e, mais recentemente, de reivindicações relativas à proteção de dados de ensaios clínicos.
Para a indústria farmacêutica brasileira de capital nacional, em processo de crescimento acelerado, a crise global da Pharma traz oportunidades e desafios. É certo que ainda por bastante tempo os medicamentos produzidos por rotas de síntese, genéricos ou não, terão lugar de destaque no mercado. No entanto, fica cada vez mais nítida a percepção de que dentre as oportunidades que se abrem para as nossas farmacêuticas, destaca-se a crescente participação dos produtos biológicos no mercado brasileiro. Numa perspectiva pró-cíclica, as políticas do Ministério da Saúde desde o governo do presidente Lulade incorporá-los nas listas de medicamentos fornecidos aos pacientes do SUS e a ação de fomento do BNDES (MDIC) e da FINEP (MCTI) na consolidação de empresas e projetos de desenvolvimento têm sido ferramentas essenciais. Estima-se que em poucos anos os biológicos participarão com mais de 50% do valor do crescente mercado de medicamentos adquiridos pelo SUS.
Mas há também desafios para a indústria farmacêutica brasileira, posto que, ao aumentar a sua musculatura nos terrenos de desenvolvimento, inovação e produção, as empresas nacionais cada vez mais serão expostas às dificuldades de novos registros que incidem há tempos nas grandes empresas transnacionais. Este desafio se colocará na disputa do mercado brasileiro, mas se tornará muito mais nítido quando (e se) as nossas empresasse expuserem à competição em outros mercados. No caso dos biológicos há ainda uma distinção importante em relação ao que foi a evolução da participação das empresas nacionais no mercado dos produtos de síntese química, fortemente baseado na produção de similares e genéricos. Muito embora a caminhada deva se iniciar pelo domínio dos biossimilares, a velocidade com que se desenvolvem novas tecnologias no campo de biológicos enseja a necessidade de um grau muito maior de energia (e ousadia) inovativa por parte de nossas empresas. Inclusive porque o período de proteção patentária de muitos biológicos está apenas começando e que a disponibilidade de processos de transferência de tecnologia de biológicos “de ponta” deverá ser restrita e, quando existir, deverá ser oferecida em condições contratuais pouco atrativas.
* Médico Sanitarista