O parto domiciliar e o coito programado no consultório

Por Ana Reis

Os recentes enfrentamentos entre o poder médico e setores da sociedade revelam o quanto a resistência ao controle dos corpos vem se politizando cada vez mais. A lei do ato médico desperta fortes reações de outr@s profissionais que deveriam compor as sempre prescritas e raramente administradas equipes multiprofissionais de saúde. Grupos de jovens mulheres saem às ruas exigindo o controle do parto onde e como quiserem. Outras fazem “amamentaços” em resposta a incitações para impedir a amamentação em cena pública. Por outro lado, as organizações dos movimentos feministas e de mulheres bloqueiam as tentativas do poder religioso (esse outro pilar do patriarcado) de institucionalizar o estupro impedindo o aborto legal.

Sabemos como se constituiu o poder médico moderno e ocidental, confinando o conhecimento sobre os corpos nas universidades e fechando-as às mulheres, depois que as igrejas exterminaram, por três séculos as mulheres que detinham saberes sobre o ciclo reprodutivo.

Avançando a industrialização e a mercantilização dos atos fisiológicos cresceram o controle e os ganhos na prescrição dos leites substitutivos da amamentação, na hospitalização dos partos e mais recentemente na engenharia da reprodução.

As já conhecidas estatísticas que revelam o escândalo das cesarianas desnecessárias, atingindo cifras de 90% em hospitais particulares, ainda são insuficientes para medir a iatrogenia com todas as suas conseqüências tanto para a saúde das mulheres quanto para a das crianças. E ainda, os dados agregados dos malefícios do racismo e da misoginia institucionais (leia-se por parte do poder médico e seus espelhos) mostrariam que fazem muito bem aquelas que procuram corajosamente assumir o comando do processo.

Digo corajosamente porque depois de séculos de doutrina de medo e insegurança, o que faziam as bisavós com confiança em casa, cercada de cuidados das parteiras, vizinhas e das outras mulheres da família, é hoje ato de bravura, rebeldia e enfretamento: parir em casa ou mesmo num hospital, ter um parto normal.

O poder de vigilância e punição outorgado pelo Estado aos Conselhos de Medicina (que atuam enquanto instituições privadas, uma vez que seus funcionários não são considerados servidores públicos) marcado pelo interesse corporativo tem se mostrado perigosamente indulgente com os notórios abusos dos profissionais. Que se lembre o caso de Roger Abdelmassih, que, antes que se divulgasse os estupros em série, durante décadas propagandeou seus pacientes famosos sem o menor puxão de orelha. Da mesma forma,seguem as clínicas de reprodução humana (ou melhor, os bancos de células e tecidos germinativos, segundo as denomina o Sistema Nacional de Produção de Embriões da Anvisa) anunciando falsas estatísticas de sucesso, muitas vezes superiores às européias.

Depois de medicalizar a contracepção, o parto, o aborto, a amamentação, medicalizam a fecundação e antes dela. O “coito programado” é invenção recente e faz parte do leque de produtos oferecidos pelas clínicas| bancos. Algumas, descuidadas como sempre do absurdo discurso onipotente, anunciam que se trata de procedimento de baixa complexidade e que pode até ser feito em consultório.

Têm muitas explicações a dar à sociedade, os Conselhos e seus dirigentes. E cabe àquelas e aqueles comprometidos com o bem comum e o respeito à autonomia das mulheres informar as pessoas e se juntar às vozes nas ruas.