PEC241: mudança constitucional com base em que pacto social, cara pálida?

Nelson Rodrigues dos Santos

 

Como se não bastasse o histórico descompromisso dos governos federais desde a conquista constitucional, que vem subfinanciando e distorcendo a realização de sistemas públicos de qualidade para os direitos sociais básicos, o Ministério da Fazenda apresenta ao Congresso Nacional a PEC-241/2016 que é verdadeiro golpe final no compromisso do Estado com esses direitos. Voltaremos  ao significado dessa PEC nas três considerações finais, com informações e questões oportunas para nosso posicionamento e mobilização; lembramos no entanto, nas quatro considerações iniciais, lances fundamentais á avaliação das  raízes da crise atual e anseios e desafios da nossa sociedade.

 

1ª Consideração: – Em meados do século passado, após a segunda grande guerra mundial, a acumulação histórica do capital financeiro especulativo  retoma seu crescimento intensivo, ilimitado e insaciável, levando á grande crise global dos anos 80 desencadeada pela crise do petróleo nos anos 70. Torna-se explícita a retomada da sua hegemonia e resistência em financiar os Estados de Bem Estar Social –EBES nos países europeus, Canadá, Japão e outros (vide governos Tachter e Reagan,1979,1980). Configura-se o “neoliberalismo” e o “consenso de Washington” nos anos 80, que estabelecem a financeirização dos orçamentos públicos que: a)impõe autonomia aos Bancos Centrais-BCs e concebe as Agências de Risco, b)estabelece que somente o mercado e os BCs fixem as taxas de juros e demais serviços da dívida pública cujos valores, por definição, deixam de ser objeto de austeridade governamental, c)define as despesas públicas primárias (investimentos em infraestrutura, direitos sociais, etc) como as únicas sujeitas á  austeridade (serem reduzidas pelo governo), e por consequência o déficit primário, quando as despesas  primárias são maiores do que resta á receita  após o pagamento dos juros e serviços da dívida, d)estabelece o significado e papéis do capitalismo central e do periférico/dependente na atual globalização, e e)assume que a maior ameaça ao desenvolvimento contemporâneo é o EBES e o keynesianismo, propondo sua substituição por programas sociais compensatórios focais e marginais. As imposições acima são desenvolvidas em diferentes intensidades e formatos estratégicos em cada país e blocos geoeconômicos e geopolíticos na ordem: capitalismo central e periférico/dependente. A União Europeia que surgiu para “nivelar por cima” seus EBES e não voltar a ser palco de nova guerra mundial arrasadora, agora sob pressão neoliberal vem cedendo para a “troika”: FMI/BCEuropeu/Comunidade Europeia, os países mediterrâneos de Portugal á Grécia, que o digam.

 

2ª Consideração: – Nova crise global do capital, em 2008: iniciada no mercado de financiamento imobiliário nos EUA com crescimento exponencial do capital “virtual”, leva a quebras bancárias que chegam ao grande banco Lehman Brothers e se estende a bancos europeus. O BC/EUA(FED) e na sequencia o BCEuropeu acertam socorro de US$ 1 trilhão para a rede bancária privada manter-se e “manter as economias” dos países. Em 2012 eram estimados em paraísos fiscais, entre US$21 a 32 trilhões (Banco de Compensações Internacionais). De 2008 a 2013 a riqueza global salta de US$92,4 para US$152 trilhões (Boston Consulting Group). Segundo trabalho do respeitável Instituo Federal Suíço de Pesquisas Tecnológicas, publicado em 2011, no mundo, 147 superconglomerados com 2/3 de capital bancário controlam 1318 conglomerados que por sua vez controlam as 43.000 maiores corporações empresariais, detendo 47% da sua riqueza.

 

3a Consideração: – Estas duas primeiras considerações  aparentemente pouco tem a ver com o debate dos complexos desafios postos para a implementação da política de saúde e demais direitos sociais consagrados na Constituição/1988. Mas nosso país também integra o referido quadro global:  a opção da nossa sociedade e dos constituintes nos anos 80 por um EBES brasileiro foi clara e consistente:  o Título da Ordem Social da nossa Constituição reconhece os direitos sociais fundamentais, o Capítulo da Seguridade Social e sua comprovada sustentabilidade com o Orçamento da Seguridade Social para a Previdência/ Assistência Social e Saúde, assim como os Capítulos da Educação, Cultura, Meio Ambiente, Ciência e Tecnologia, etc, e a política pública de saúde referida pelos fatores condicionantes da saúde-doença, pelo direito de todos e dever do Estado, pela Relevância Pública e os princípios da Universalidade, Igualdade, Integralidade, Descentralização, Regionalização e Participação Social. Vale lembrar o papel do Estado Republicano de refletir a construção democrática e permanente do pacto social entre as classes e segmentos da sociedade, maiorias e minorias, em torno dos direitos humanos comuns, do bem comum, da igualdade de oportunidades, da coisa pública e, por isso, de um modelo de desenvolvimento regulado com toda transparência pelo tripé Democracia-Estado-Mercado. Vale também lembrar que os regimes autoritários e populistas de nossa história conviveram com buscas de caminhos para avanços no pacto social e construção do EBES: a)nos anos que antecederam 1964, com os projetos desenvolvidos no Instituto Superior de Estudos Brasileiros-ISEB, projetos da Frente Parlamentar Nacionalista, Industria de Base, Extração e Refino de Petróleo, Reformas de Base (urbana, agrária, da educação, da saúde, tributária, e outras), e b)a nossa “revolução industrial” nos anos 30 foi fortemente influenciada pelo keynesiano New Deal nos EUA. Essa busca nacional foi interrompida pelos “golpes”: ditatorial em 1964 e do “consenso de Washington” nos anos 90, com a financeirização do nosso orçamento público, com os juros e dívida pública crescendo geometricamente, em substituição da incontrolável hiperinflação anterior. Julgamos oportuno reconhecer que as buscas de saídas civilizatórias pelas sociedades modernas em nossos dias é bem mais complexa e hoje um tanto confusa e ansiosa, para além do simplismo “neoliberalismo puro x EBES puro”, desafio para os movimentos sociais e as áreas da História, Ciencias Sociais e outras. Este texto permanece  experiência pessoal para contribuir nessas buscas.

 

4ª Consideração: – Até prova em contrário, em nosso país, tudo tem a ver  entre a consideração anterior e as estimativas de massiva renuncia fiscal clientelista/mercadista de impostos e contribuições sociais acima de R$ 500 bilhões; a simples sonegação estimada em 2015, em R$ 500 bilhões; a corrupção na suspensão de multas por sonegação pelo Conselho Administrativo da Receita Federal (operação Zelotes), em até R$ 500bilhões; depósitos brasileiros em paraísos fiscais(Swiss Leaks): US$ 520 bilhões(mais de R$ 1 trilhão); 230 mil brasileiros (pessoas físicas), cada um aplicando no mercado financeiro global em 2015, o mínimo de US$ 1 milhão, e 296 mil brasileiros(0,14% da população) estão nos 1% mais ricos do mundo. Acresce que 0,o5% dos nossos super-ricos, tem 2/3 da sua renda isenta de tributos e em 2013 nossos 71.440 mais ricos(o,o34% da população) tiveram R$632,2 bilhões isentos, em um sistema tributário dos mais injustos do mundo, que recolhe em tributos 29% da renda familiar da faixa acima de 30 salários mínimos, mas 54% da faixa abaixo de 2 salários mínimos. Nosso país está em último lugar na tributação do patrimônio, propriedade e capital, com grandes fortunas sem tributação e os dividendos isentados pela Lei 9249/1995, e está entre os que mais tributam a produção de bens e serviços (50% do total arrecadado). Vale lembrar a comparação de analistas que concebem a “bolsa-empresário”, estimando que cada R$500 bilhões equivalem a 17 anos do bolsa-família, ou 2 anos do SUS ou 2,4 anos da Educação.

 

5ª Consideração: – Em nosso Orçamento Geral da União de 2010, a Previdência e Assistência Social estavam com 24,84%, Saúde- 3,9%, Educação- 2,8%, Segurança Pública- 0,5%, Saneamento Básico- 0,04%, Energia- 0,04%, Transporte- 0,7% e juros/ serviços da dívida pública- 44,93%.  Desnecessário comentar. Em 2012 os 44,93% já estavam em 47,19%. Com nossa altíssima taxa de juros de 14,25% desde 2013, estaremos pagando somente de juros em 2016, R$720 bilhões (60 bilhões por mês ou 2 bilhões por dia). Nosso déficit primário ao final de 2016 está divulgado oficialmente por volta de R$ 170,5 bilhões. Para se aproximar do equilíbrio fiscal Receita-Despesa, a autoridades da área econômica dos governos, em nenhum momento tem voltado suas propostas de austeridade para o disposto na consideração anterior, menos ainda admitem qualquer “rombo” nesse nível. Essas autoridades declaram publicamente que “o rombo está na Previdência Social, na Saúde e na Educação”, e que “a Constituição Federal não cabe no orçamento público”.

 

6ª Consideração: – Nossa Previdência Social tem 85% dos seus beneficiários (30% da população) na faixa de renda mensal até 2 salários mínimos (70% até 1 salário mínimo), massa de trabalhadores pobres e miseráveis, incluindo desempregados, que no entanto, pelo seu trabalho e consumo, viabilizam mais de 4.000 municípios de menor porte, dentre os 5.574 municípios. Se adicionarmos a classe média baixa com renda mensal entre 2 e 5 salários mínimos, teremos mais de 76% da população trabalhadora, que subiria para 91% com a classe média media (5 a 10 salários mínimos) também trabalhadora. Todos com direitos humanos de cidadania de saúde, educação, etc. Todos potencialmente garantidos pelo Orçamento da Seguridade Social da Constituição/88, sem o desvio da DRU(Desvinculação de Receitas da União), nem das pesadas e discutíveis renuncias fiscais e subsídios públicos. É a essa população que está dirigida a responsabilidade de mais renúncia a direitos,  com mais austeridade nos deveres de Estado e cortes mais drásticos nos gastos primários a ela destinados.

 

7ª Consideração: – A anunciada PEC-241/2016 encaminhada pelo Governo ao Congresso Nacional, restringe o cálculo das despesas federais primárias, exclusivamente á correção da inflação do ano anterior, isto é, zerando seu crescimento real.  Desconsidera o crescimento populacional, a incorporação de tecnologias na qualidade dos serviços, e, no caso da saúde e do SUS, o aumento da porcentagem de idosos na população e a correção do drástico sub-financiamento nos seus 26 anos. Para o SUS, com o financiamento federal historicamente congelado entre 1,6 e 1,7% do PIB, e recentemente muito piorado com a retrógada EC-86/2015, a PEC-241/2016 se aprovada rebaixará a dotação do Ministério da Saúde,  não só mais drasticamente, como alinhará estruturalmente á estratégia de serviços públicos focais, compensatórios e marginais. Não por coincidência, a Agencia Nacional de Saúde-ANS, autarquia federal capturada pelo mercado de planos privados, prepara simultaneamente, projeto para legalização do mercado de oferta de planos privados com franquia: mensalidades baixas com franquia alta e vice-versa,  visando adesão de segmentos sociais mais pobres, sob o lema de que “o consumidor precisa sentir no bolso”. A PEC-241 não é mais um ajuste draconiano contra o desenvolvimento do país e direitos sociais, é na realidade um golpe estrutural final nas pretensões nacionais, imposto pela acumulação intensiva, ilimitada e insaciável do grande capital globalizado e nacional. Anula o princípio constitucional de gasto mínimo(piso) com direitos humanos fundamentais, vinculado á evolução da receita pública(vinculação positiva) e põe no lugar o gasto máximo(teto) vinculado ao índice inflacionário do ano anterior(vinculação negativa).

 

Finalizando: — A sociedade em debate e opção democráticos, delegou aos poderes Executivo e Legislativo, legitimidade e poder para congelar por 20 anos seus direitos constitucionais? – mesmo que seu atendimento seja ainda precário? Ao propor congelamento dos gastos públicos primários por 20 anos, impede o exercício democrático da sociedade manifestar-se eleitoralmente a cada quatro anos perante o Executivo e Legislativo e durante os mandatos, e pressionar politicamente na montagem e execução dos orçamentos públicos. Vinte anos foi a duração da ditadura, 1964-1984, que retirou da sociedade toda uma geração em defesa dos direitos sociais, do modelo de desenvolvimento e das liberdades democráticas, com reflexos negativos, até nossos dias, no perfil da “classe política” e do seu eleitorado, que fragiliza a nação. Troca a construção constitucional do Estado Brasileiro de Bem Estar Social pelo império incontrolável do mercadismo neoliberal especulativo.   Tão a vontade se encontra o Ministro da Fazenda, que no dia 25/Julho, em entrevista, lamentou não poder legalmente conter as despesas previdenciárias, na Educação, na Saúde e com os salários, e defende mudanças estruturais pelo Congresso Nacional visando teto para os gastos públicos com base na inflação do ano anterior, ou a alternativa de elevação de impostos, certamente os mais regressivos, para sociedade pagar o déficit primário. Como se não bastasse, o Ministério da Fazenda pleiteia a incorporação da Previdência Social para si, oficializando os direitos sociais trabalhistas e previdenciários como questão fazendária e não mais social.

 

(As fontes de dados e informações podem ser solicitadas ao autor)