Feminicídios em tempos sombrios

Ana Liési Thurler

 

Os feminicídios expressam o caráter de dominação que persiste no patriarcado, com a radicalidade da apropriação da vida das mulheres. Já não é suficiente dispor dessas vidas no cotidiano, insistir em relações de servidão. É necessário ainda deter o poder de eliminar vidas que não contam — extirpadas ou não: a vida das mulheres. O feminicídio é a máxima violação dos direitos humanos das mulheres, retirando-lhes o bem fundamental: a vida. O termo feminicídio surgiu em março de 1976, em Bruxelas, no Tribunal Internacional sobre Crimes Contra a Mulher.  É o assassinato de mulheres por sua condição de gênero, em um contexto de desigualdades, de disseminação e banalização da violência. Esses assassinatos não são casos isolados, mas uma forma extrema de violência sexista. São fenômenos culturais e sociais, mortes evitáveis.

 

No Brasil, as leis se multiplicam, mas as violências aumentam tanto quantitativamente, quanto na intensificação das perversidades. Nos últimos trinta anos, foram assassinadas no país cerca de 91 mil mulheres, sendo que 43,5 mil na primeira década deste século (dados do Instituto Sangari). É uma guerra, um femigenocídio. Cada vítima é uma vítima sacrificial. A crueldade exercida sobre o corpo das mulheres deveria atingir, por sua truculência, a sociedade inteira, mas a violência está banalizada. Tais atos de crueldade são epifenômenos de uma realidade submersa com uma estrutura de relações, conforme bem reflete Rita Segato. Enfim, sob fenômenos de intensa violência — não pontuais, não acidentais, não dispersos, nem eventuais — há uma estrutura oculta a ser desvelada: a realidade de uma segunda economia, com capital de origem criminosa, com importância enorme, representando ao menos o dobro da primeira economia, contabilizável, controlável, visível. O Estado dedica grande parte de sua “violência legítima”, atuando mediante agentes de segurança pública, para proteger propriedades e vidas “legítimas”, contra a violência ilegítima.

 

A informalidade divulgada é a dos periféricos, pobres, não brancos. Mas a “segunda economia”, essa, sim, é a grande informalidade, e diz respeito a homens — banqueiros, grandes empresários, políticos —, brancos, auto-denominados “homens de bem”. Prestigiados bancos do norte que precisam lavar o dinheiro sujo, acumulado na segunda economia. No Brasil, essa dupla realidade — em relações promíscuas e processo de mafialização — tem sido desnudada em acontecimentos com repercussão nacional, que rapidamente desaparecem dos noticiários. Em novembro de 2013, a Polícia Federal apreendeu, no município de Afonso Cláudio no Espírito Santo, um helicóptero pertencente à empresa Limeira Agropecuária, com 450kg de cocaína, do Deputado Estadual de MG, Gustavo Perrella (Solidariedade), filho do Senador Zezé Perrella (PDT/MG). (https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2013/11/25/pf-apreende-450-kg-de-cocaina-em-helicoptero-da-familia-perrella.htm) Em 25 de junho de 2017, a FAB interceptou, no Estado de Goiás, um avião bimotor com 500 kg de cocaína. Esse avião decolou da Fazenda Itamarati Norte, propriedade do Ministro da Agricultura Blairo Maggi (senador licenciado do PP/MT). (www.brasil.elpais.com/brasil/2017/06/26/politica/1498506161_256460.html).

 

Tempos de Estado de direito e democracia golpeados, tempos de conservadorismo, fundamentalismos são tb tempos de muita violência contra meninas e mulheres. Nesse quadro torna-se imperativo refletir, discutir as relações sociais de gênero vigentes, buscar construir outras masculinidades. Violências contra meninas e mulheres, estupros, assassinatos/feminicídios são crimes de poder – não de paixão – próprios do padrão de masculinidade dominante/hegemônica, culturalmente construído e mantido, para o projeto capitalista neo-liberal.

 

* – Ana Liési Thurler é Socióloga.