Sonia Fleury: ‘O Estado deve ser capaz de ouvir a sociedade e construir com ela’
A jornalista Andréa Vilhena entrevistou a sanitarista Sônia Fleury, onde a sanitarista falou um pouco sobre a trajetória de construção do SUS, sua ligação com o Cebes, a revista Saúde em Debate. Sobre o momento atual da política o Brasil ela diz: “Se nós, construtores dessa institucionalidade, não transmitirmos esperança, como a população vai acreditar na democracia e na possibilidade de mudança?”. Ela também abordou o projeto de pesquisa Novo Federalismo no Brasil: tensões e inovações em tempos de Pandemia de Covid-19, coordenado por ela e Assis Mafort. A produção do livro é fruto de parceria entre o CEE, o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) e o Cebes.
Como escreve Andréa Vilhena: “No livro, foram analisados os diferentes poderes, como cada um dos atores na arena pública se posicionou diante da pandemia. Ao longo de 15 capítulos, a pesquisa analisou, por exemplo, o Supremo Tribunal Federal e todas as normas que os ministros baixaram; os governos estaduais e as normativas que foram criadas; os consórcios regionais, o Consórcio Nordeste; a vacância de coordenação do Ministério da Saúde; a sociedade civil; a Frente pela Vida, a CPI“.
Veja a conversa a seguir.
“Nós precisamos pensar cada ação do Estado, cada atuação de um servidor dentro de um projeto de Estado pedagógico. O Estado tem que ser um transmissor de valores e ser capaz de ouvir os valores da sociedade, negociar, transformar e construir juntos”, defendeu a sanitarista Sonia Fleury, pesquisadora do CEE-Fiocruz, durante o Encontro Nacional da Rede Brasileira de Escolas de Saúde Pública 2023, nos dias 22 e 23 de novembro, em Brasília (DF).
O evento celebrou os quinze anos da rede, com o tema Formação em saúde no enfrentamento das desigualdades e na reconstrução democrática do Brasil e do SUS: a importância da RedEscola. Sonia Fleury proferiu a conferência de abertura Saúde e Democracia: desafios à formação dos trabalhadores para o fortalecimento do sistema público, universal, inclusivo e comprometido com a superação das iniquidades em saúde.
Representantes das 60 instituições que compõem a RedEscola estiveram presentes. O objetivo do encontro foi promover a troca de experiências entre escolas do Sistema Único de Saúde (SUS) e universidades, a fim de estimular discussões e ações que fortaleçam a educação permanente e a formação em saúde no Brasil.
Entre os convidados estiveram representantes da Fiocruz, Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass), Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems), Ministério da Educação (MEC), Conselho Nacional de Saúde (CNS) e Organização Pan-Americana da Saúde (Opas/OMS).
A trajetória de Sonia como sanitarista, que teve ativa participação na luta pela democratização e no enfrentamento das desigualdades e iniquidades em saúde, foi destacada no evento. Em sua exposição, ela salientou a importância de se retomar a discussão que envolve saúde e democracia, refletindo sobre a complexidade do momento atual. “Como, depois de tantos anos de luta e construção democrática, nós ainda temos um país extremamente desigual?”, questionou, defendendo a necessidade de “democratizar a democracia, fazendo com que a democracia chegue para todo mundo”, e propondo se repensar a “estratégia para concretizar essa nossa esperança numa sociedade democrática, com a saúde de qualidade universalizada”.
Sonia lembrou de seu trabalho como professora militante, na formação de gerações de profissionais da área da saúde e de sua atuação nas várias áreas em que trabalhou com o lema Saúde e Democracia, desde a psicologia social, ciência política e o sanitarismo.
“Precisamos ter um projeto de nação, democrático, inclusivo, de sociedade justa, mas isso implica, necessariamente, ter uma estratégia coletiva”
Todo esse tempo de construção da democracia no país foi, em suas palavras, marcado “por fortes esperanças”. Hoje ela diz que é preciso retomá-las. “Se nós, construtores dessa institucionalidade, não transmitirmos esperança, como a população vai acreditar na democracia e na possibilidade de mudança?”. Por isso, citando Paulo Freire, Sonia enfatizou que esse sentimento deve ser traduzido como “esperançar, no sentido de ação concreta”, em oposição ao verbo esperar. “Precisamos ter um projeto de nação, democrático, inclusivo, de sociedade justa, mas isso implica, necessariamente, ter uma estratégia coletiva”.
Como faz questão de sublinhar, sua visão sobre o processo democrático, que culminou com a institucionalização do SUS, não é o de uma historiadora, mas de “uma militante que participou da construção, tanto do ponto de vista teórico, como prático e político, desse projeto”. E embora seja uma história singular, foi “articulada a um processo coletivo que o país estava vivendo”.
Sonia citou diversos momentos marcantes desse percurso, como sua participação no Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes) e na Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp/Fiocruz), instituições com as quais continua contribuindo ativamente, hoje estando vinculada também ao Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz. “Participei em diferentes momentos, como profissional e como militante, na construção teórica e político-institucional da reforma sanitária e da construção do SUS”, relatou.
Conforme observou a sanitarista, os anos 70 foram fundamentais para a construção de uma nova visão da medicina, de sua prática e do conceito de saúde. Esse processo começou com “uma revisão do conhecimento, incluindo categorias como a determinação social do processo saúde e doença, a organização social da prática médica e a prática da medicina comunitária”, que possibilitou uma nova forma de conceber a realidade para mudá-la e , posteriormente, contribuiu para a base epistemológica do SUS.
Hoje, Sonia identifica a incorporação de novas questões, como a determinação comercial da saúde, e ressalta que é preciso pensar nos instrumentos conceituais em que se baseiam. “São os mesmos de 40 anos atrás, ou eles incorporam uma visão que seja mais correspondente à complexidade da situação atual?”
“O Brasil não pode ser pensado sozinho, nós temos muito o que ouvir dos nossos irmãos latino-americanos”
O papel da Opas, durante os anos 70, também mereceu destaque em sua apresentação, pela difusão de uma nova concepção na área de saúde com a incorporação das Ciências Sociais. “Não pensar mais a saúde como exclusivamente prática médica”, e introduzir conteúdo disciplinares como “história em saúde, economia em saúde, sociologia em saúde”. As duas reuniões realizadas por essa organização internacional, em Cuenca, Equador (1972, 1983), segundo a pesquisadora, foram marcantes por mostrarem que esse processo não acontecia apenas no Brasil, mas na América Latina. Sonia esteve presente no segundo encontro. Ela ressaltou ainda a importância da Associação Latino-Americana de Medicina Social (Alames), uma organização política sem fins lucrativos, formalmente constituída, em 1984, durante o III Seminário Latino-Americano de Medicina Social, realizado em Ouro Preto, Brasil. “O Brasil não pode ser pensado sozinho, nós temos muito o que ouvir dos nossos irmãos latino-americanos que têm experiências tão sofridas, mas tão criativas quanto nós e unir forças”.
Sonia falou ainda sobre o papel da Ensp, do ponto de vista institucional, nos anos 70 e 80, com a incorporação de dois programas: o Peses (Programa de Estudos Socioeconômicos em Saúde), de Ciências Sociais em Saúde, e o Peppe (Programa de estudos e pesquisas populacionais e epidemiológicas), da Epidemiologia. Ao olhar para esse percurso, ela lembrou do contexto político da ditadura, ressaltando que era uma ditadura de militares desenvolvimentistas, em que se vivia “a contradição de ter um autoritarismo militar”, que ao mesmo tempo perseguia vários de seus companheiros e queria o conhecimento deles “para transformar a realidade”. E comparou: “Hoje, quando nós temos um governo conservador, é para desmontar as políticas, não é para montar”.
O apoio institucional para o acolhimento das novas ideias teve, também, a importante contribuição de alguns intelectuais como Hernani Braga, na Ensp, José Pelúcio Ferreira, na Finep, o Isaac Kertenetsky, no IBGE, explicou Sonia. “Sem eles, teria sido muito mais difícil que nós pudéssemos ter espaço institucional para transformar as diferentes instituições”, pois “nós não podíamos estar à frente, como comunista que éramos”.
Sonia destacou a importância do Projeto Peses em sua articulação com centros formadores na área da saúde e de instituições criadas pela sociedade civil para a difusão das novas ideias. Outro ponto de destaque dessa época foi a descentralização dos cursos, que a Ensp fazia já nos anos 70. “Havia essa preocupação de nacionalizar aquilo que estava acontecendo em alguns espaços”.
Todos esses acontecimentos, em sua avaliação, foram sementes do que depois viriam a ser a formação e a consolidação de uma rede. Como explicou, o objetivo era não ficar isolado e buscar articulação dentro das condições existentes. “Nesse sentido, o Cebes e a Abrasco foram instrumentos fundamentais da construção de um projeto comum, da articulação e da difusão para jovens estudantes, que estavam se apropriando desses conhecimentos”.
A criação da revista Saúde em Debate, do Cebes foi outro marco, apontado pela pesquisadora, que contribuiu para a articulação nacional do campo da saúde coletiva.O papel da Abrasco, também, foi realçado na articulação da produção científica e na defesa da institucionalização do campo da saúde coletiva em várias arenas institucionais, como a Capes e o CNPq.
“O SUS é a materialização da luta da Reforma Sanitária”
A 8ª Conferência Nacional de Saúde, de 1986, segundo a pesquisadora, foi “um momento de construção de um acordo político entre diferentes atores, excluído o setor privado, que decidiu não participar”. Como explicou, esses diferentes atores construiram e solidificaram um projeto no relatório. Ao lembrar do processo de contrução desse documento, ela indagou: “Qual é o nosso projeto atual e como está sendo construído? Como nós o materializamos em propostas estratégicas da direção política que queremos conduzir?”
Sonia sublinhou que o SUS é a materialização da luta da Reforma Sanitária, tendo seu propósito se conformado no Instituto de Medicina Social, em 1978, e se transformado em projeto político, quando incorporado pelo Cebes e levado ao Plenário de Saúde da Câmara. Em 1988, ela explicou que, mesmo tendo alguns vetos por conta da indústria e das multinacionais em relação à saúde do trabalhador e controle de medicamentos, o texto entrou na Constituição quase na íntegra. No entanto, em sua avaliação, a situação de construção do SUS não se resolve apenas pela institucionalização legal. “Se você não tiver uma força instituinte, o que está instituído pode ficar lá como letra morta, na Constituição”.
Essa força instituinte garantiu a proposta de participação social e descentralização do SUS presente na Constituição. O texto, no entanto, foi vetado pelo então presidente Fernando Collor. “Nós levantamos a bandeira da ousadia para cumprir a lei e fizemos com que ela se concretizasse na segunda lei orgânica”, explicou Sonia, sublinhando o porquê da singularidade de o país ter duas leis orgânicas na saúde ((8.080/1990 e 8.142/1990). A segunda recupera a ideia de participação e descentralização que Collor tinha vetado.
“Havia muita pressão contrária, já numa perspectiva de austeridade, do neoliberalismo, com grande influência das instituições internacionais, que propunham que o sistema fosse focalizado e não universalizado”, disse, explicando que a tensão entre universalização e focalização foi extremamente forte nos anos 1990.
Os sistemas de proteção social universalizados na América Latina, pontuou Sonia, beneficiavam a classe média e os grupos corporativos, mas não os mais pobres. Nesse sentido, ela ressaltou que a experiência do SUS é “maravilhosa e uma das mais ricas da história brasileira”, pois além de enfrentar uma construção política de oposição, mostrou que não precisava se opor à universalização e criar um sistema só focalizado para pobres. “O que foi feito foi focalizar dentro de uma universalização”, explicou. Em sua avaliação, o SUS realizou um “projeto antropofágico”, capaz de engolir aquilo que estava sendo colocado como oposição ao próprio sistema. “Essas experiências precisam ser pensadas e repensadas, porque indicam possibilidades, táticas e estratégias importantes”.
Ao pensar o SUS hoje, Sonia explicou que, mesmo com a atenção primária estendida e com a melhoria das condições de saúde materno-infantil, o sistema continua com inúmeros problemas. A “peregrinação” do usuário doente, procurando atendimento de uma unidade a outra, é um desses problemas. Outro seria o “sentimento de humilhação” da pessoa consciente do seu direito à saúde, ao perceber que isso lhe é denegado. “É claro que temos restrições materiais e objetivas, mas como lidamos com isso?”, indagou a pesquisadora. “Deixar o usuário por si ou tentar acolhê-lo da forma que for possível, discutindo o que está acontecendo, levando-o para uma outra instância, um pouco melhor?”. Para ela, a ideia de acolher e de construir com o usuário uma percepção do sistema, das dificuldades, mas também dos direitos, “é fundante da ideia da universalização”. Do contrário, disse, “nós continuamos em um patamar de denegação mesmo do contradireito à saúde”.
A pesquisadora ressaltou que considera a expansão das escolas de saúde pública, um grande avanço na construção de recursos humanos para a área de saúde. E lembrou que uma de suas pesquisas, que deu origem ao livro Democracia e inovação na gestão local da saúde (Editora Fiocruz, 2014), mostrou que o preparo em cursos para gestão e planejamento é a variável explicativa número um da capacidade de inovação dos gestores. Na pesquisa, foram analisados o perfil e a gestão de secretários municipais de saúde do país, em 1996 e uma década depois, em 2006. “Isso é uma coisa maravilhosa, saber o quanto a educação pode ser transformadora, educação para o SUS, educação para ser gestor do SUS.”
“A reconfiguração das relações de poder, no Brasil, impõe um novo cenário”
No evento, Sônia abordou, também. um dos trabalhos recentes que coordenou no CEE-Fiocruz e deu origem ao livro Social Policy dismantling and de-democratization in Brazil – Citizenship in Danger (Cidadania em perigo – Desmonte das Políticas Sociais e Desdemocratização no Brasil), lançado em agosto de 2023, em inglês, pela editora Springer, e que será lançado em português, pelo CEE-Fiocruz, pelo Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (Icict-Fiocruz) e pelo Cebes. A obra resulta dos estudos desenvolvidos no projeto integrado Futuros da Proteção Social, um dos nove do CEE-Fiocruz. “Nós estudamos o desmonte da proteção social no Brasil, no governo populista, autoritário e negacionista em várias áreas”, disse, explicando que os resultados da pesquisa mostraram ter havido “um desmonte violento em todas as áreas”, que se processou de forma estratégica e diferenciada, de acordo com as fragilidades existentes em cada setor.
Outra questão intensificada durante a pandemia, de acordo com a sanitarista, foi o modelo de organização dos poderes no Brasil. Ela e o pesquisador Assis Mafort, também à frente do projeto de pesquisa Futuros do Federalismo, do CEE-Fiocruz, coordenaram uma pesquisa sobre as mudanças nas relações federativas, entre estados, municípios e União, observadas nos últimos anos. O trabalho deu origem ao mais novo lançamento editorial da dupla, lançado no final de novembro deste ano, Novo Federalismo no Brasil: tensões e inovações em tempos de pandemia de Covid-19. A produção do livro é fruto de parceria entre o CEE, o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) e o Cebes.
No livro, foram analisados os diferentes poderes, como cada um dos atores na arena pública se posicionou diante da pandemia. Ao longo de 15 capítulos, a pesquisa analisou, por exemplo, o Supremo Tribunal Federal e todas as normas que os ministros baixaram; os governos estaduais e as normativas que foram criadas; os consórcios regionais, o Consórcio Nordeste; a vacância de coordenação do Ministério da Saúde; a sociedade civil; a Frente pela Vida e a CPI. “Vimos que há mudanças enormes. Primeiro nós saímos de um modelo federativo que estava previsto na Constituição, que é o modelo do federalismo cooperativo, e que o SUS foi um dos grandes indutores deste federalismo, porque criou os conselhos, as conferências, depois criou a bipartite, as comissões intergestores”. Ver mais sobre o livro aqui.
Sônia explicou que a arquitetura do federalismo cooperativo, presente em outras áreas do governo, além da saúde, foi tributária dos avanços do SUS, como forma de coordenação interfederativa de seus entes. “Nós criamos um federalismo cooperativo. Ele estava previsto na Constituição, mas o artigo 23 da Constituição dizia que seria, por lei ordinária, resolvido como é que se daria essa coordenação interfederativa, e nunca foi feito.
A pesquisa mostrou que, durante a pandemia, “os vários atores se posicionam de forma diferente nessa arena, e o federalismo muda para um federalismo não mais de cooperação, mas de enfrentamento, de contestação e enfrentamento”, disse Sônia. E o embate entre governo federal e estaduais levou a um “reordenamento dos posicionamentos das relações intergovernamentais”. A situação fez com que o STF mudasse seu padrão de atuação, continou a pesquisadora. “Antes ele sempre atuava, quando havia uma demanda, uma contestação dos estados em relação à União, decidindo-se favoravelmente à União. Na pandemia e no governo do pandemônio, ele passou a decidir favoravelmente aos Estados”, explicou, completando que, hoje, o STF está sendo acusado de estar hipertrofiado, de estar sempre fazendo política, mas isso aconteceu “porque o resto não estava fazendo”, afirmou, se referindo a uma ausência do papel condutor do governo federal na época. Assim como no STF, houve mudanças na atuação do Legislativo também. “Passou a ter um orçamento secreto, do qual ele não quer abrir mão de forma alguma, retirando recursos que eram do Executivo para fazer política pública, e agora você faz uma política que não é coordenada, não é planejada, enfim, com muito mais dificuldade”. Os resultados do trabalho apontam ainda para uma mudança na atuação dos governos estaduais e do Conass que “passou a emitir uma série de posições contra o governo”, afirmou Sônia, para, em seguida, indagar: “Hoje, quando estamos querendo ter políticas nacionais, será que as pessoas estão considerando esse deslocamento das relações federativas?”
Como ressaltou a pesquisadora, a reconfiguração das relações de poder impõe um novo cenário. O Brasil sempre foi muito centralizado, disse Sonia, explicando que os programas que vinham do governo central, eram absorvidos, e se espalhavam “por ondas, até chegar nos municípios”. Diante da maior autonomia dos entes federativos, ela indagou como vai ser fazer uma política, por exemplo, voltada aos trabalhadores do setor saúde. “Eles [estados e municípios] vão aceitar porque foi o Ministério que orientou, normatizou, ou isso vai ter que ser trabalhado politicamente de uma forma muito mais complexa, dado esse nível de autonomização que houve dos entes federativos?”.
A extrema desigualdade do país foi outro aspecto importante evidenciado durante a pandemia, disse Sonia. Além disso, foi possível observar que as políticas [públicas] não são pensadas para grande parte da a população que mora em favelas e periferias. Apesar do apoio dos agentes de saúde que conviviam ou viviam nas comunidades, das instituições universitárias, das secretarias e escolas de saúde, ela explicou que a população teve que “autogerir a produção do seu cuidado”, um aspecto que, daqui para frente, em sua avaliação, não deve ser deixado de lado por aqueles que lidam com planejamento.“Os casos de Covid e de mortes na comunidade estavam subnotificados. Então, a população providenciou os próprios painéis epidemiológicos, que se tornaram instrumentos para se negociar com as autoridades medidas mais concretas”. Isso está documentado em outro trabalho coordenado por Sonia, o Dicionário de Favelas Marielle Franco, no qual há uma sessão especialmente dedicada à Covid nas favelas. “A população nos pediu isso, porque era um instrumento importante de difusão desse conhecimento. Hoje, nós pesquisadores já escrevemos vários artigos com base no material que a comunidade colocou ali.”
“Hoje, as democracias no mundo estão em crise”
Conforme ressaltou Sonia, a Saúde precisa interagir com essas comunidades, absorver seus saberes, sua forma solidária de ação e de construção do comum, usando toda potência do capital social existente nesses territórios. “Temos que disputar com o mercado essa articulação com a população das periferias”, propôs a pesquisadora, alertando que o mercado já está fazendo isso por meio da difusão “de uma ideologia neoliberal do empreendedorismo”.
Sonia buscou situar a discussão envolvendo saúde e democracia não apenas ao longo da história da Reforma Sanitária Brasileira, mas, também, em comparação com o contexto geopolítico global, lembrando que, antes, “ nós não tínhamos democracia, mas tínhamos um projeto de saúde. Hoje, as democracias no mundo estão em crise”. A conjuntura, demonstrada com a recente eleição de Javier Milei na Argentina, alertou, “acende o sinal vermelho”, e nos mostra que “se os governos de centro-esquerda não forem capazes de atender aos seus clientes, que são os eleitores, e forem subjugados pelo mercado, o risco está colocado”. Conforme explicou, “não precisa de golpe”. Ela chamou atenção para o fato de a democracia poder ser, a qualquer momento, destituída por processos eleitorais e ser facilmente substituída por governos autoritários. “Temos que entender que a sociedade brasileira, hoje, revelou-se para nós muito fora do ideal que queríamos. Achamos que, mudando as instituições, tendo um governo eleito de centro-esquerda, a sociedade tinha mudado”, avaliou. Em sua opinião, depois do governo Bolsonaro, a sociedade se tornou ainda mais violenta. “Uma sociedade muito violenta, que resolve os seus conflitos pela negação do outro e não pela negociação, que é parte da democracia”.
O Brasil vive, hoje, no seu entender, um impasse, demonstrado em números: 50% aprovam o atual governo e 46% reprovam. Isso acontece “apesar de todos os programas sociais que estão sendo reconstruídos e ampliados, como Bolsa Família, Minha Casa, Minha Vida, política de cotas e Mais Médicos, e dos programas novos, como Desenrola, além de mudanças no aumento da isenção do imposto de renda, redução da inflação, redução da taxa de desemprego, aumento do PIB, redução da taxa Selic”, enumerou. Para Sonia, tal impasse mostra que “tudo que está sendo feito não chega à população da forma que deveria, para transformar culturalmente valores, para acreditar que é possível mudar”.
Como analisou, há dois limites à ação do governo para que consiga uma governabilidade democrática – governança e governabilidade. “Governança é conseguir aprovar com o Congresso, com os poderes, mas governabilidade é atender aos anseios da população que legitimem o governo”. Sonia chamou a atenção para dois aspectos que interferem nas iniciativas do governo: a “dependência de obter maioria em um Congresso absolutamente conservador”, que, como foi visto na pesquisa sobre o federalismo, teve seu poder hipertrofiado; e o poder da mídia e do mercado financeiro, capazes de impor “a ideologia do déficit zero” na balança comercial, “como se isso fosse uma cláusula sagrada”, desviando as discussões sobre os rumos do país “da esfera da política para a esfera dos tecnocratas que estão no Banco Central” e destituindo a ideia de que “o país tem o direito de decidir como vai ser e para onde vai”.
Sonia disse que é preciso assumir riscos estratégicos, não apenas aumentando o assistencialismo, pois “as pessoas estão morrendo de fome”, mas indicando possibilidades estratégicas de câmbios estruturais. Em sua avaliação, o país deve invistir em projetos como o Complexo Econômico e Industrial da Saúde, que absorvam mão de obra e possibilitem um novo rumo para o desenvolvimento nacional. “É o que os governos estão fazendo no mundo inteiro, até nos Estados Unidos, abandonando o neoliberalismo. Mas nós continuamos com a predominância do discurso neoliberal, em relação às políticas de austeridade e limitação do gasto público, que vários economistas hoje questionam”.
“A difusão da cultura do comum e da solidariedade deve ser uma luta cultural e política”
A pesquisadora sugeriu uma política econômica que contemple tanto a formalização do trabalho como a informalidade. “Milhões de brasileiros vão continuar na informalidade”, lembrou, pois não têm capacitação e não têm cultura para entrar no mercado formal. “O que nós fazemos com eles?”, questionou, “continuamos só com o programa assistencial ou nós vamos fazer economia solidária e criar um modelo de desenvolvimento econômico para a informalidade?”.
A difusão da “cultura do comum e da solidariedade”, afirmou Sonia, deve ser uma luta cultural e política e fazer parte do que ela chama de projeto do Estado pedagógico. “O Estado tem que ser um transmissor de valores e, também, ser capaz de ouvir sobre os valores da sociedade, de ouvir e negociar, transformar e construir junto”, propõe, sublinhando que essa transformação deve ocorrer na formação não só dos trabalhadores da saúde, mas de todos os servidores. “E os fundamentos do Estado de direito, que é base da democracia, devem chegar a todos os territórios”, acrescentou.
Sonia realça os entraves ao universalismo de base solidária, que sustenta o direito universal à saúde, advindos da ideologia neoliberal. “Temos uma contaminação dessa ideia de aceitação não da igualdade, mas da diferença, até pelos organismos internacionais da área de saúde. A OMS e a Opas substituíram a ideia do direito universal igualitário à saúde pela ideia da cobertura universal da saúde. Não é a mesma coisa”, afirma.
Ela explica que a ideia do direito universal está baseada em um projeto igualitário, explica a pesquisadora, no qual as pessoas teriam acesso aos bens públicos, inclusive à atenção à saúde, de acordo com a necessidade e a disponibilidade de recursos que o país tenha, para todos igualmente. Mas hoje nos organismos internacionais de saúde, de acordo com Sonia, há o entendimento de que parte dos serviços deve ser privatizada, “que cada um vai ter atenção de acordo com a sua capacidade de pagamento, contributiva e financeira”. A sanitarista defende que essa ideologia da estratificação e da diferença tem que ser combatida.
Sonia ressaltou ainda a importância das lutas identitárias, uma das pautas importantes presentes na 17ª Conferência Nacional de Saúde, realizada em julho de 2023. “A ideia da desigualdade neste país, se perpetua fundamentalmente pelo racismo, pelo sexismo, patriarcalismo e colonialismo”, explicou, lembrando que é preciso “ouvir os outros e entender a importância das lutas das pessoas que estão nas favelas, das pessoas negras, dos quilombolas, dos indígenas, das lutas identitárias, mas não aceitar a ideia de que a equidade deve ser o princípio diretor das políticas públicas, substituindo o da igualdade e da universalidade”. A equidade é um mecanismo para se chegar na universalidade, mas ela não é o valor em si, explica a sanitarista, sublinhando que a igualdade deve ser construída politicamente, combatendo as desigualdades injustas no país.
Ela citou o relatório da Oxfam, publicado em 20/11/2023, para falar do aumento exponencial da riqueza no mundo, inclusive durante a pandemia, explicando que de acordo com o documento um imposto de 5 % sobre os super-ricos pode tirar 2 bilhões de pessoas da pobreza. “Nós temos que mudar a estratégia, combater os super-ricos”, defendeu, lembrando que 1 % dos ricos é responsável por 16 % das emissões de gases do efeito estufa. “Eles fazem mal para a sociedade e fazem mal para o meio ambiente”.
Para finalizar, Sonia lembrou a fala de Sergio Arouca, na 8ª Conferência Nacional de Saúde, sobre o tema Saúde e Democracia, quando fez uma convocação para que a população seja mais ouvida. “Nós não somos donos do conhecimento porque damos aula. Temos que ouvir da população como se sobrevive com o salário mínimo, tendo cinco filhos. Isso é conhecimento, isso é estratégia, é capacidade de planejar, de viver”, concluiu Sonia, conclamando o governo a melhorar sua capacidade de se comunicar, divulgando suas ações. “Por isso que eu falo em Estado pedagógico. Quando a gente fala em comunicar, o pessoal pensa que é fazer marketing. Não é marketing, é falar as coisas, é discutir politicamente as coisas com a população”.
Acesse a conversa na íntegra também no site do CEE-Fiocruz.