Salta aos olhos a pífia atuação da ANS
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Ricardo Menezes*
A pífia atuação da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), órgão vinculado ao Ministério da Saúde, na execução de uma de suas atribuições precípuas, o ressarcimento ao SUS, salta aos olhos segundo revela relatório de auditoria do Tribunal de Contas da União (TCU). Desde sua criação pouquíssimo se fez para garantir o cumprimento efetivo de dispositivo (o ressarcimento ao SUS) estabelecido na legislação em – pasmem – 1998!
A ANS ao invés de se ater às suas competências e cumprir suas atribuições legais, se dedicou ao “fomento” de planos e seguros de saúde. E o Ministério da Saúde – a instituição que coordena nacionalmente o Sistema Único de Saúde (SUS) – não interviu no órgão, redirecionando sua atuação para, a um só tempo, tratar da regulação econômica do mercado privado de assistência à saúde, indo ao encontro do interesse dos usuários de planos e seguros de saúde, e do ressarcimento ao SUS, incrementando, desse modo, o minguado financiamento público da Saúde no Brasil.
Assim, a fiscalização, o controle e o monitoramento econômico de planos e seguros de saúde ficou em segundo plano – pois subordinados à lógica do “fomento” – e o ressarcimento aos cofres públicos simplesmente não foi implantado com a amplitude e a efetividade devidas.
Se prestar-se a atenção aos avanços que a ANS nos últimos anos apregoa ter conseguido, quase todos eles foram secundados pelo envio aos usuários de singela carta assinada pelas operadoras de planos e seguros de saúde anunciando aumentos nas escorchantes prestações que essas operadoras cobram daqueles cidadãos e daquelas cidadãs que deveriam ter acesso garantido ao Sistema de Saúde nacional, público e universal, o SUS, conforme estabelece a Constituição Federal. Ou seja, quaisquer providências que o poder público adota, mesmo as mais comezinhas e corretas do ponto de vista dos usuários, são repassadas às prestações mensais pelas operadoras.
Cabe lançar luz sobre o que é o ressarcimento ao SUS: todo procedimento que as operadoras de planos e seguros de saúde devem prestar aos seus usuários, mas que são prestados pelo SUS, as operadoras devem ressarcir ao SUS o valor correspondente ao procedimento. Simples, não? E mais: operacionalmente o que vem a ser o ressarcimento? Trata-se do cruzamento de bancos de dados: os bancos de usuários de planos e seguros de saúde são cruzados com os bancos de faturamento do SUS – consulta, exame laboratorial, serviço de apoio diagnóstico e terapêutico de médio e alto custo, internação, atendimento de urgência e emergência, atendimento odontológico –, ou seja, todos os procedimentos que conformam a assistência médica, hospitalar e odontológica (Inciso I e § 1º do Art. 1º e Art. 32 da Lei nº 9.656, de 3 de junho de 1998, que Dispõe sobre os planos e seguros privados de assistência à saúde).
Ora, se é assim, por que o ressarcimento ao SUS não é realizado com a amplitude e a efetividade devidas já que vivemos em plena era da informática, ou melhor, num tempo em que a informatização da vida diária e das atividades cotidianas é cada vez mais célere, inclusive na Saúde?
Grifo que a realização do ressarcimento ao SUS ampla – não se trata somente de ressarcir internações, conforme a fria letra da lei atesta – e efetiva, afora ser um mecanismo de provimento de recursos, teria o condão de iniciar a inadiável separação entre o interesse público e o interesse privado na prestação de assistência à saúde ou, mais precisamente, iniciar a desprivatização da coisa pública na Saúde, e, também, se constituiria em um mecanismo de regulação indireta de certa categoria de estabelecimentos de assistência à saúde vinculados ao SUS.
Há de se enfatizar: se há um órgão vinculado ao Ministério da Saúde cuja gestão deva ser radicalmente mudada, esse órgão é a ANS. Afinal, conforme já se fez referência, trata-se de órgão que foi criado com duas relevantíssimas atribuições precípuas – a fiscalização e o controle econômico das operadoras de planos e seguros de saúde e a realização do ressarcimento ao SUS pelo atendimento de usuários dessas operadoras –, porém seu desempenho deixa a desejar. E não é em razão de deficiência do arcabouço institucional: a ANS detém poder de polícia administrativa necessário em face das suas atribuições e, durante o governo Lula, foram providos, mediante realização de concursos públicos, quadros estáveis de servidores para o órgão, o que não havia até então. Por outro lado, a ANS é vinculada ao Ministério da Saúde – coordenador, na esfera federal, do SUS – para que o Sistema de Saúde nacional, o SUS, possa, também, fiscalizar, controlar e monitorar a prestação de serviços de saúde privados e não-universais à população brasileira.
Nos últimos anos amiúdam críticas e polêmicas envolvendo a ANS, publicadas nos veículos de comunicação do país. Citarei quatro exemplos recentes, dois de 2009 e dois de 2011, a título de ilustração.
O jornal O Estado de S. Paulo, em 13 de outubro de 2009, versão impressa, trouxe matéria com o seguinte título: Nova diretoria da ANS é contestada – Agência que tem a função de regular setor no País pode ter 3 dos 5 dirigentes ligados a planos de saúde (disponível em http://m.estadao.com.br/noticias/impresso,nova-diretoria-da-ans-e-contestada,449715.htm).
Nesta matéria é tratado do manifesto organizado por movimentos sociais, de defesa do consumidor e entidades da área da Saúde, como o Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (CEBES), entre outras, contra a indicação de profissionais originários do mercado de planos e seguros de saúde para a diretoria da ANS. Na ocasião, o representante do CEBES, Mário Scheffer, assim se manifestou: “Há um nítido conflito de interesses. Como você pode ter uma composição majoritária de representantes justamente do setor que tem de ser regulado, fiscalizado?”, e, ainda, “Se hoje a atuação da ANS na defesa de interesses de consumidores já é pífia, imagine como ficará com a nova formação”, completou.
O jornal Folha de S. Paulo, em 28 de janeiro de 2011, versão impressa, tratou do ressarcimento em matéria, que motivou destacadíssima manchete de capa nessa edição do diário, intitulada: Reembolso de planos de saúde ao SUS encolhe (disponível em http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff2801201101.htm).
Nesta matéria ficou evidenciado que “O ressarcimento dos planos de saúde ao SUS, que já é pouco, caiu ainda mais. Entre 2007 e 2009, passou de R$ 8,23 milhões para R$ 5,62 milhões – queda de 31,7%”. Agregou-se também informação sobre as fontes desses dados e comentários dos autores do trabalho: “A queda do ressarcimento dos planos ao SUS consta de levantamento feito pelos pesquisadores Mario Scheffer, da USP, e Lígia Bahia, da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), a partir de dados da ANS, do Portal Transparência, e do Siaf (Sistema Integrado de Administração Financeira). ‘É uma vergonha tamanha ineficiência’, diz Scheffer. Para Lígia, professora de economia da saúde da UFRJ, a questão também passa por decisão política da ANS. ‘Ela está capturada pelo setor regulado’ [planos de saúde]”, encerra. Já o secretário de Estado da Saúde de São Paulo afirmou que hoje as operadoras vivem uma “situação cômoda”. “Elas recebem dos seus clientes, mas não têm nenhum custo quando esses pacientes são atendidos na rede pública”.
A matéria contém informação sobre auditoria realizada pelo Tribunal de Contas da União (TCU), na qual ficou demonstrado que “em cinco anos, a ANS deixou de cobrar dos planos R$ 2,6 bilhões – mais de R$ 500 milhões por ano”.
Ouvida pela reportagem da Folha de S. Paulo, a ANS reconheceu que “essa fiscalização precisa ser aprimorada”. Por seu turno as operadoras de planos e seguros de saúde não se manifestaram formalmente, mas fizeram chegar à jornalista sua alegação de que a lei que instituiu a norma do ressarcimento “é inconstitucional”, embora o Supremo Tribunal Federal (STF) já tenha declarado a legalidade e a constitucionalidade do ressarcimento ao SUS, previsto no Art. 32 da Lei nº 9.656, de 3 de junho de 1998.
Sem pretender desviar o foco deste artigo da ANS, chamo a atenção para a análise, que acompanha a referida matéria da Folha de S. Paulo, assinada por Hélio Schwartsman, articulista do jornal, sob o título Ressarcimento é defensável, mas é preciso contar a história toda. Raro ler nos meios de comunicação de massas tradicionais, em meio à avalanche de matérias que prioritariamente abordam os efeitos negativos da dinâmica contraditória de desmonte do SUS em curso desde o seu nascedouro, a menção a duas questões causais desse desmonte: por um lado, a crônica insuficiência do investimento público e, por outro, a imensa renúncia fiscal patrocinada pela União em detrimento do SUS (e em desfavor de cerca de 75% de brasileiros e de brasileiras) e, objetivamente, em benefício dos negócios das operadoras de planos e seguros de saúde.
Aquele articulista, ao finalizar sua análise sobre o ressarcimento ao SUS, destaca a importância de se discutir “(…) as deduções de despesas médicas no IR [Imposto de Renda]. Aqui não falamos de trocados. Em 2005, a sociedade devolveu aos mais ricos R$ 24 bilhões gastos com planos e médicos privados”. Especialistas em financiamento da Saúde no Brasil apontam valores menores de renúncia fiscal e desonerações diversas da União, acrescidos de renúncia e desoneração estaduais e municipais, porém também os situam na casa de muitos bilhões de reais!
No dia 30 de janeiro de 2011, o jornalista Elio Gaspari, em coluna publicada em diversos jornais (O Globo, Correio do Povo e outros), escreveu a seguinte nota:
Golpe à vista
Alguns sábios das operadoras de planos de saúde querem ressarcir o SUS pelo atendimento de sua clientela na rede pública, compensando a Viúva com créditos em exames laboratoriais.
Há anos o calote passa por baixo das mesas da Agência Nacional de Saúde e, segundo o Tribunal de Contas, entre 2003 e 2007 as operadoras já embolsaram R$ 2,6 bilhões.
A proposta é curiosa. Seria um retorno ao escambo do tempo em que os índios trocavam pau-brasil por machadinhas. As operadoras cobram da choldra em reais e pagariam ao SUS com exames feitos por terceiros. Seria o caso de se contrapropor que a escumalha pagasse suas mensalidades com bananas, repolhos e latas vazias”.
Por fim, no espaço do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) no portal da internet Última Instância, em 2 de abril de 2009, Juliana Ferreira publicou consistente análise sob o título Falhas da ANS no ressarcimento ao SUS, disponível em http://ultimainstancia.uol.com.br/colunas_ver.php?idConteudo=63208.
A autora, depois de recapitular o posicionamento do Supremo Tribunal Federal em face da Ação Direta de Inconstitucionalidade apresentada pela entidade Confederação Nacional de Saúde, logo após a edição da Lei nº 9.656, de 3 de junho de 1998, que Dispõe sobre os planos e seguros privados de assistência à saúde, a qual pleiteava a declaração de inconstitucionalidade de diversos dispositivos dessa lei, inclusive do artigo que institui o ressarcimento ao SUS, assim conclui o seu trabalho:
“Pois bem. Diante da clara orientação do Judiciário no sentido de reforçar a legalidade e constitucionalidade do ressarcimento ao SUS, resta verificar se há empenho do Executivo em dar cumprimento a este instituto legal.
A ANS é responsável pela regulamentação e efetivação deste ressarcimento, nos termos do mencionado dispositivo legal, bem como no artigo 4º, VI, da Lei 9.961/2000 que instituiu esta agência.
Diante disso, a ANS editou a RDC 62, de 20 de março de 2001, que estabelece normas para o ressarcimento ao SUS. Esta norma foi alterada, em 18 de março de 2005, pela Resolução Normativa 93, tornando objeto de ressarcimento todos os procedimentos previstos pelos contratos de planos e seguros de saúde, ampliando o modelo de ressarcimento que era restrito aos casos de internação e atendimentos de urgência e emergência.
Vale ressaltar que recentemente a ANS editou a Resolução Normativa 185, de 30 de dezembro de 2008, que institui o procedimento eletrônico de ressarcimento ao SUS, revogando a RDC 62. Porém esta norma ainda não está em vigor.
Ocorre que, apesar da alteração promovida pela ANS em sua regulamentação e de o artigo 32 da Lei 9.656/98 determinar que todos os procedimentos devem ser ressarcidos, sem fazer qualquer discriminação, constatou-se que na prática isto não ocorre.
Em sessão plenária do TCU (Tribunal de Contas da União) realizada em 25 de março de 2009, foi analisado o relatório de uma auditoria realizada na ANS, no período entre 25 de agosto de 2008 a 5 de setembro de 2008. A principal constatação desta auditoria foi de que os procedimentos ambulatoriais não são considerados para fins de ressarcimento. Os auditores do TCU apuraram que a ANS não processa o ressarcimento ao SUS de procedimentos ambulatoriais, fazendo-o tão-somente quanto às AIH (Autorizações de Internação Hospitalar).
Porém, conforme consta deste citado relatório, os valores despendidos, de 2003 a 2007, para pagamento dos atendimentos ambulatoriais de alto custo, processado por meio de APAC (Autorização de Procedimentos de Alto Custo) superam os das AIH em mais de R$ 10 bilhões. E consta ainda do relatório de auditoria que:
‘(…) A ANS argüi limitações funcionais e materiais como impeditivas de se processar o ressarcimento ao SUS para todos os procedimentos. A considerar as limitações invocadas pela Agência, seria mais produtivo processar as APAC em detrimento das AIH. Portanto, por princípio, pela materialidade envolvida, pelo que determina a lei, é injustificável e desrespeita os princípios da razoabilidade, da moralidade e da eficiência, o fato de tais procedimentos não serem objeto de ressarcimento ao SUS.(…)’
Diante desta irregularidade, o TCU determinou à ANS que ‘passe a processar, a partir de 2009, o batimento também dos procedimentos ambulatoriais de média e alta complexidade e que informe, em 90 dias, um cronograma no qual entenda ser possível organizar-se para proceder ao batimento das APAC relativas aos atendimentos ocorridos na rede do Sistema Único de Saúde desde o início do processamento do ressarcimento das AIH pela Agência, a partir da vigência da Lei 9.565/1998’.
Além dessa, foram constatadas uma série de outras irregularidades no processo de ressarcimento regulado e processado pela ANS, em razão das quais o TCU fez uma série de determinações à ANS, à Controladoria Geral da União, ao Ministério da Saúde. Foi constatado que:
• O processo de ressarcimento ao SUS é moroso e ineficiente. O fator tempo, sempre favorável às operadoras de saúde, perpassa todas as fases do processo e acaba por não efetivar o ressarcimento ao SUS.
• Há deficiências na estrutura da Agência para a efetivação do ressarcimento, havendo a necessidade de a ANS: 1) introduzir alterações na sistemática de batimento, ou seja, de confronto da base de dados do SUS com os dados dos beneficiários de planos de saúde (Sistema de Informações de Beneficiários da ANS – SIB); e 2) inserir filtros mais eficientes, de modo a diminuir notificações desnecessárias. Há ainda a insuficiente alocação de recursos humanos para o processamento do ressarcimento, em razão da ‘opção da Agência em não priorizar essa atividade’.
• É necessária uma redefinição da política de atualização dos valores da Tunep (tabela base de valores para o ressarcimento), pois como seus valores são baixos (iguais aos valores da tabela SUS), as operadoras beneficiam-se de tal medida em razão de, ressarcindo os atendimentos de seus beneficiários pelos valores SUS, desoneram-se dos custos indiretos associados aos atendimentos hospitalares (instalações, recursos humanos), que teriam de suportar caso esses atendimentos fossem diretamente prestados por elas.
• A fragilidade dos controles internos da Agência, tanto da Corregedoria quanto da Auditoria Interna da ANS, que carecem de recursos humanos suficientes para uma atuação mais ampla e efetiva.
• A inexistência de acompanhamento efetivo pelo Ministério da Saúde. Como a ANS firmou Contrato de Gestão com o Ministério da Saúde, no qual são pactuadas metas de desempenho, deveria haver parecer do Ministério da Saúde avaliando o desempenho da ANS e este inexiste.
• Há falta de interação entre os diversos sistemas utilizados na ANS.
• A Agência não dispõe atualmente de uma adequada política de segurança da informação.
Conclui-se, portanto, que apesar da decisão do Poder Legislativo reafirmado pelo Poder Judiciário, a ANS ainda não despende esforços suficientes para a efetivação deste mecanismo, que visa sanar indevido uso de recursos públicos pelos planos de saúde privados”.
Ao término destas considerações, registro que, caso avance no cumprimento das suas atribuições precípuas estabelecidas em lei, a ANS, órgão vinculado ao Ministério da Saúde, desempenhará papel positivo no improrrogável e abrangente processo de resgate do Sistema de Saúde nacional, público e universal, o SUS, do pântano institucional que o conservadorismo brasileiro de todos os matizes vem lhe destinando desde o longínquo ano de 1989. De quebra, colocará um fim na relação entre o SUS e o mercado de planos e seguros de saúde sem a realização de ressarcimento amplo e efetivo, ou seja, estancará o emprego de recursos públicos em benefício de operadoras de planos e seguros de saúde privados, conforme a auditoria do Tribunal de Contas da União (TCU) evidenciou.
Com a palavra o ministro da Saúde.
* Ricardo Menezes é médico sanitarista da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo e mestre em Saúde Pública pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo.