As pandemias na história e o desafio da Covid-19: Idade Moderna

Maria Eneida de Almeida, Mestre e Doutora em Saúde Coletiva, IMS-UERJ. Docente do curso de medicina na Universidade Federal da Fronteira Sul – campus Chapecó-SC. Coordenadora do CEBES – Núcleo Chapecó-SC. Membro do Conselho Consultivo da Diretoria do CEBES Nacional. Contato: maria.almeida@uffs.edu.br

Matheus Ribeiro Bizuti, Acadêmico de Medicina, UFFS – Campus Chapecó-SC. Gestão de Comunicação do CEBES – Núcleo Chapecó-SC. Membro do Conselho Fiscal da Diretoria do CEBES Nacional. Contato: matheus_ribeiro.bizuti@hotmail.com

Acesse aqui o texto introdutório e o 1o capítulo (sobre Antiguidade e Idade Média) dessa série de textos do núcleo Chapecó do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde.

No período do Renascimento passou a vigorar uma determinação política, com crescimento gradual, sobre a necessidade de organização mais especializada de uma Saúde entre os povos, com a experiência adquirida através da prática da quarentena e do código sanitário original. Mas para isso, era preciso que a organização local de Saúde Pública estivesse mais bem organizada, o que não era uma realidade da época. Este também foi o momento em que nascia o Sistema Mundial Moderno.

Os primeiros Estados capitalistas nasciam com seus territórios, com suas economias, com seus poderes de conquista sobre o mundo e, da mesma forma, nasciam com suas ciências (FIORI, 2004). O campo da Saúde Pública foi sendo construído ao mesmo tempo em que os povos começavam a viver demarcados por fronteiras político-econômicas e fronteiras territoriais. Neste sentido, a organização da Saúde Pública Moderna se deu como uma das decorrências deste movimento originário, porém, impulsionada pelas pandemias.

A característica da administração centralizada teve, com William Petty, médico inglês, economista e cientista, a primeira sistematização da Saúde Pública de um Estado territorial, ao implantar a prática dos primeiros registros vitais da Inglaterra. Começou, desta forma, a construção de uma metodologia de análise estatística para vários campos: população, educação, renda e doenças.

Este campo científico chamou-se “aritmética política”, tinha o objetivo de sustentar e dirigir políticas para o Estado, munidas de dados estatísticos, onde o método quantitativo era trabalhado no sentido de se aumentar o poder e o prestígio da Inglaterra. John Graunt, no último terço do século XVII, seu conterrâneo e contemporâneo, especializou-se no campo da saúde e construiu os princípios do método estatístico de análise, a “tábua da vida”, valendo-se de estatísticas que estavam sendo acumuladas, sobre mortalidade, nascimento, sexo, doenças físicas e emocionais.

Esse campo de conhecimento teórico e também prático, foi disseminado por outros Estados, mas teve, na Inglaterra, o conhecimento fundador que gerou, no século XVIII, a primeira teoria matemática de probabilidade para a análise dos fenômenos vitais. E, nesse sentido, esta é uma das raízes da ciência da Epidemiologia. Na França, Colbert também implantou a pesquisa estatística da população. “Uma população grande e sadia estava no centro do interesse dos aritméticos políticos porque era um meio, essencial, para se aumentar a riqueza e o poder do Estado” (ROSEN, 1994, p. 95).

Sob a ideia da elaboração de uma política de saúde para o Estado, Petty salientava a necessidade de controle das doenças transmissíveis, o cuidado com a maternidade, com os recém-nascidos, a atenção na infância, e apontava a obrigação do Estado em promover o progresso dos cuidados da medicina e cuidar das doenças e da saúde da população. Deste ponto de vista, esta consideração foi a origem da “Medicina Social”, os dos cuidados de Saúde dirigidos do Estado para a sociedade.

Petty recomendou, em 1687, a criação de um Conselho de Saúde em Londres, bem como a construção de um hospital de mil leitos, com isolamento das doenças transmissíveis para atender a clínica e a pesquisa clínica. O objetivo era não desperdiçar recursos humanos do Estado e atender à saúde da comunidade, prestando assistência aos pobres.

A característica da política de Saúde inglesa, neste momento, foi prioritariamente local por conta da guerra civil que rompeu as ligações entre as esferas de poder sob o reinado de Stuart. Somente a partir do século XIX, a Inglaterra passaria a ter avanços em nível nacional, quando internamente suas políticas se unificaram ao mesmo tempo em que externamente assumia seu status de Império com poder de intervenção global.

Na Alemanha, polícia médica era sinônimo de administração da Saúde Pública. Numerosas e rígidas medidas foram elaboradas para assegurar o bem-estar da população e preservar a saúde, pois o aumento da população deveria atender o nível desejável para o fortalecimento do poder do Estado e de sua economia. A administração de Saúde foi constituída com programas de supervisão das parteiras, atendimento aos órfãos, limpeza e drenagem das cidades, manutenção dos hospitais e assistência aos pobres.

Leibnitz, filósofo, cientista e político desta época, desenvolveu a relação saúde-doença/governo central através de investigações estatísticas sobre saúde/mortalidade da população e recomendou a criação de um Conselho de Saúde no governo central. O médico Behrens defendeu, no mesmo período, uma supervisão da Saúde Pública pelo governo. Estes esforços culminaram, no final do século XVIII, na teoria de Peter Frank sobre uma forma sistemática de organização.

As teorias estatísticas se difundiam pela Europa e se consolidavam dentro dos primeiros Estados territoriais. Por conta das epidemias, o objetivo era que este campo fosse parte da política externa dos Estados, porém, generalizadamente, a administração pública da saúde não avançava além da esfera local.

As cidades, e não o governo central, cuidavam da limpeza das suas ruas, do seu sistema de esgotos, do seu suprimento de águas. Na questão da assistência médica, hospitais gerais foram construídos e dava-se início à clínica, também para estudantes na assistência a pobres e idosos.

As epidemias que surgiram neste período foram: suor inglês, tifo exantemático, escorbuto, escarlatina, varicela e sífilis. A epidemia do suor inglês, um tipo de infecção viral, espalhou-se pelo continente europeu, assolando a Alemanha, Áustria, Países Baixos, Dinamarca, Suécia, Polônia e Rússia. O tifo surgia, sobretudo nos períodos e locais de guerras, sendo relacionada a fome, a pobreza e a falta de higiene.

As doenças assolavam prisões, navios e hospitais, sendo disseminadas aleatoriamente. O escorbuto, a doença do mar, devia-se à falta de vitamina C e foi sendo erradicada pelas pesquisas clínicas da medicina naval. A sífilis, o grande flagelo que havia surgido no século XV, espalhou-se rapidamente em surtos epidêmicos na Alemanha, França, Suíça, Holanda, Grécia, Inglaterra, Escócia, Hungria e Rússia e, no século XVIII, se endemizou.

A varíola, epidêmica desde o fim da Idade Média na Europa, foi levada pelos colonizadores para a Ásia, África e América no século XVII, tornando-se mais branda e endêmica, entretanto, permaneceu uma ameaça constante para a Saúde Pública.

A peste continuava seus picos epidêmicos e uma série de epidemias de difteria irrompeu, sendo levada para as Américas. A grande massa da população, ao longo dos séculos, era acometida, recorrentemente, pelas epidemias.

Os doentes vão em cortejo, não tem outra coisa em comum a não ser infecção da difteria, da cólera, da febre tifoide, da ‘coceira’, da varíola, da febre vermelha, a ‘caxumba’, o ‘dendo’, a ‘morrinha’, ou ‘hairon’, a ‘calça galante ou mal quente’ ou ainda a coqueluche, a escarlatina, as gripes, a influenza… (BRAUDEL, 1995, p. 67).

Esta lista, elaborada para a França, repetia-se com variantes. Na Inglaterra, as doenças correntes eram as febres intermitentes, a suadeira inglesa, a clorose ou doença verde, a icterícia, a tísica, o mal caduco ou epilepsia, a vertigem, o reumatismo, a gravela, as pedras.

O Iluminismo, período de consolidação do Sistema Mundial Moderno, ou do sistema interestatal, que organizou a articulação política e financeira entre os Estados nacionais, foi o mais fecundo dos movimentos da reforma sanitária na Europa.

Com a industrialização da Inglaterra, palco da I Revolução Industrial, o modelo industrial se espalhou pela Europa juntamente com seus problemas. O pauperismo ascendia no cerne da nova sociedade, as epidemias serpenteavam as moradias imundas e superpovoadas, se alastrando pelas fábricas e pelas novas cidades do progresso.

Eric Hobsbawm (1977, p. 224) refletia que, neste período,

(…) as cidades e as áreas industriais cresciam rapidamente, sem planejamento ou supervisão, e os serviços mais elementares da vida da cidade fracassavam na tentativa de manter o mesmo passo: a limpeza das ruas, o fornecimento de água, os serviços sanitários, para não mencionarmos as condições habitacionais da classe trabalhadora. “A consequência mais patente da deterioração urbana foi o reaparecimento das grandes epidemias de doenças contagiosas”.

Foi sendo dada importância crescente à ideia de uma reforma sanitária no sentido de se articular um movimento internacional para organização interna e externa da Saúde Pública e sistematizar medidas de prevenção nas fronteiras territoriais.

Na Inglaterra e na França os grandes filósofos, cientistas políticos e sociais, formulavam teorias e elaboravam políticas públicas para fortalecer o poder e a riqueza de suas nações. A construção da nação com a ideologia hegemônica da época – o progresso – com significado decorrente do processo de estruturação da revolução industrial, econômica, financeira e social, estava exigindo uma reforma da sociedade. Uma nova questão social emergia e a reforma sanitária foi uma importante tônica neste processo.

Com Jeremy Bentham foi apresentada a primeira teoria política-social-sanitária inglesa, dentro de um misto de iniciativa privada com ação pública. Dentro da ideia de Peter Frank, os povos germânicos estabeleceram “uma ciência” de polícia médica, com proposta de construção de um “sistema de polícia médica integral” para assistência completa aos habitantes de seus territórios. Thomas Bernard sistematizou uma teoria de ação social para a saúde na Inglaterra, fundindo as ideias de Bentham e Frank.

A população urbana aumentava incessantemente, trazendo mais pobreza, alta taxa de mortalidade infantil e muita sujeira. Os surtos epidêmicos eram frequentes e cada vez mais intensos, começando a atingir as classes mais nobres dos grandes financistas e, em consequência, foi o ponto central para maior atenção do Estado. Foi dado início à construção de dispensários para pobres, idosos e indigentes. Segundo Robert Castel,

(…) a vertente extra-hospitalar era representada pelos postos de beneficência, criados em 1776. Colocados em princípio sob a autoridade dos governadores dos departamentos, de fato estabelecimentos municipais, e seu financiamento, eram precários. (1998, p. 301).

A noção de higiene foi sendo implantada como uma política internacional para os hospitais como uma reforma sanitária necessária “e, em 1793, a Convenção determinou que cada paciente tivesse seu próprio leito e que os leitos guardassem, um do outro, uma distância de três pés” (ROSEN, 1994, p. 121).

Tanto Manchester, a primeira cidade que se industrializou na Inglaterra, quanto Londres, foram os primeiros alvos de grandes surtos epidêmicos e, por isso, o planejamento urbano passou a ser de interesse crescente. Deram início à pavimentação das ruas, á canalização e ao suprimento de água, às melhorias no sistema de esgotos e fossas com construção de latrinas públicas para a massa da população e latrinas privadas para as pessoas que tinham condições de pagar por isto.

Um Plano Nacional de Saúde inglês com códigos sanitários para serem cumpridos estava sendo intensamente trabalhado, elaborado e avaliado. Na estruturação deste sistema de saúde pública eram incluídos os cuidados na gestação, no nascimento, na infância, nos campos da higiene, e na nutrição, atendendo a recreação e as moradias.

Igualmente foram sendo sistematizados os registros de mortes, casamentos e nascimentos. Foi iniciada a construção de um sistema de leis para atender ao movimento sanitário no sentido de prevenção das epidemias quando se propôs, pela primeira vez, a criação de um cargo do governo específico – o ministro da Saúde.

Adam Smith, em ‘A Riqueza das Nações’ comenta que teria estimulado a legislação sanitária se soubesse de técnicas para lidar com problemas de saúde. Ainda mais significativa foi a proposta de Jeremy Bentham, em seu ‘Código Constitucional’, de 1820, o grande projeto de uma utopia prática que ocupou os últimos anos de sua vida. Bentham propôs um ministério de quatorze membros, entre os quais um ministro da saúde, responsável por saneamento ambiental, doenças comunicáveis e pela administração dos cuidados da medicina. Embora não entrasse em vigor nesta época, a ideia de Bentham prenunciava o futuro e teve uma influência notável sobre os líderes da reforma sanitária na Inglaterra que viriam criar a Saúde Pública no sentido atual. (ROSEN, 1994, p. 134).

A experiência sanitária inglesa era difundida para outras nações como França, Suécia, Alemanha, ao mesmo tempo em que as doenças se alastravam e atravessavam o Atlântico, chegando aos Estados Unidos, juntamente com sua primeira grande onda migratória. O nome “aritmética política” foi substituído por “estatística”, empregado pela primeira vez, “em 1749, para designar a análise da organização política, econômica e social dos Estados” (ROSEN, 1994, p. 136). Esta ciência se difundia rapidamente, inclusive na Constituição original da Federação dos Estados Unidos foi estabelecido o censo decenal.

Os Estados Unidos nasceram como Estado um pouco antes de sua primeira grande onda migratória, entre 1800 e 1830, período em que houve o fortalecimento de sua agricultura ao mesmo tempo em que se iniciava sua industrialização. Este processo endógeno dividiu o norte e o sul e as estatísticas vitais ficavam cada vez mais aperfeiçoadas, para a constituição do novo Estado territorial.

Bentham instalou um escritório central de estatística no governo inglês e, na Suécia, este conhecimento se transformou em prática generalizada. Era uma política aritmética da população, para registros estatísticos de doenças com formulação de legislações correlatas. Ainda em 1756, foi criado um órgão no governo sueco, a Comissão das Tabelas, para preparar dados específicos para o Estado.

A ideia da elaboração de uma “geografia da saúde e da doença” que, segundo George Rosen veio de Heródoto e Hipócrates, se apoiava em dados estatísticos para a realização de inquéritos sanitários. As doenças epidêmicas, cujo movimento de industrialização e urbanização as tornavam mais agravantes, tanto para os trabalhadores quanto para as elites, impulsionou Leibnitz a propor, na Alemanha, uma “topografia política ou uma descrição das condições atuais do país” (ROSEN, 1994, p.138).

Esses movimentos aconteciam no mesmo período em que a ideia de nação surgia, transcendendo o território. Os médicos-públicos trabalhavam de acordo com os projetos políticos de seus Estados, realizando inquéritos médico-topográficos com o objetivo de mapear as doenças como fator diferenciador das populações. A teoria da higiene e as ações de prevenção ganhavam abrangência internacional como um

(…) apelo à razão e crença no progresso e na capacidade de aperfeiçoamento do homem. Se juntarmos ao senso do progresso a esperança de salvação humana baseada em uma revolução na moralidade social e o desejo de persuadir os outros sobre a necessidade e a racionalidade dessa mudança, começaremos a entender a grande ênfase em educação, em saúde e higiene; demonstrar a maneira de mudar as condições seria suficiente para melhorar. Esses esforços iniciais, porém, ajudaram a preparar o caminho para as campanhas de saúde de meados e do final do século XIX. (ROSEN, 1994: 140).

A peste assolava a Europa; a febre amarela se disseminava pelos Estados Unidos; a febre tifoide atingia fábricas, exércitos e populações urbanas e rurais. A varíola surgia em surtos; tifo exantemático; disenteria; difteria; escarlatina e sarampo despontavam recorrentemente. No início do século XVIII foi inventada a técnica da inoculação ou variolização, sendo aceita internacionalmente a partir de 1750. Em 1798, a primeira vacina de varíola foi fabricada com rápida difusão do método de vacinação. A dinâmica das políticas internas da Saúde Pública havia se complexificado e exigia-se maior rapidez para soluções transfronteiriças. As vacinas eram uma grande descoberta.

As epidemias de cólera em 1831/32, 1848/49, 1853/54 e no final do século, foram decisivas para a organização da Saúde Pública, visando o desempenho dos trabalhadores fabris e dos exércitos em guerras. Os meios de disseminação eram transportes, comércio e imigração, e eram intensificadas as medidas de controle tradicionais, o isolamento social e as quarentenas.

A consequência mais patente da deterioração urbana foi o reaparecimento das grandes epidemias de doenças contagiosas (principalmente as transmitidas pela água), notadamente a cólera, que reconquistou a Europa a partir de 1831 e varreu o continente de Marselha a São Petersburgo em 1832 e novamente mais tarde. (…) o tifo não chamou a atenção até 1818. Daí em diante ele cresceu (…) até que o aperfeiçoamento urbano acabou com uma geração de desleixo. Os terríveis efeitos deste descuido foram tremendos, mas as classes média e alta não o sentiram. Só depois de 1848, quando as novas epidemias nascidas nos cortiços começaram a matar também os ricos, e as massas desesperadas que aí cresciam tinham assustado os poderosos com a revolução social, foram tomadas providências para um aperfeiçoamento e uma reconstrução urbana sistemática. (HOBSBAWM, 1977, p. 224).

Era tácita a importância da Saúde Pública para o progresso, e políticas nacionais e internacionais começaram a dar maior consideração à disseminação de doenças infecciosas. Este era um fato altamente prejudicial ao comércio internacional. Acordos técnico-científicos internacionais começaram a ser elaborados e firmados, transparecendo a necessidade de políticas públicas sanitárias internas e externas que correspondessem à nova configuração do Estado. Para tal garantia, várias instituições internacionais foram sendo construídas com a finalidade de promover e manter a paz entre as nações ao mesmo tempo em que para estimular o desenvolvimento industrial com fortalecimento das economias nacionais, para a riqueza e poder dos Estados.

Com a aritmética política, existente desde início do século precedente, a partir de 1820, houve uma valorização potencial da estatística médica no campo da Saúde Pública. O reconhecimento dos métodos de avaliação e análise deu-se com Quetelet, cientista da Bélgica, cuja obra fundamental publicada em 1948 demonstrou a importância da variação em todos os fenômenos biológicos e sociais, com um método analítico quantitativo que privilegiava as curvas de probabilidade.

Este foi um período de impulso na ciência da estatística, permeando os campos da economia, matemática, política, sociologia, biologia humana e da Saúde Pública.

O tratamento estatístico de problemas de saúde pública continuou na segunda metade do século XIX, quando Francis Galton e Karl Pearson começaram a enfrentar o problema das variações correlacionadas e da assimetria das distribuições de frequência. Abria-se, assim, o período mais recente na análise estatística de problemas de saúde1 (ROSEN, 1994, p. 196).

Na Alemanha, a geografia sanitária construiu uma topografia política para a descrição das condições sanitárias, com a finalidade de diagnóstico sanitário da população, onde os pontos vulneráveis da nação seriam transformados em pontos fortes para aumentar o poder do Estado. Desta forma, abriu-se o campo da geografia humana, que era parte da teoria racial, com objetivo de identificação de novas estratégias de poder imperial.

A Alemanha foi a primeira a ter um Projeto de Lei de Saúde Pública em 1840, onde abordava todos os aspectos da saúde como direito do povo e dever do Estado, bem como seria dever do Estado intervir na saúde da população, nos casos de doenças infecciosas e mentais, com o objetivo de formular seu projeto integral de Saúde.

Este movimento estatístico da Saúde Pública impulsionou obras fundamentais como o “Relatório de Inquéritos Estatísticos” de Villermé, na França em 1840; e na Inglaterra em 1842, os “Princípios da Saúde Pública” de Chadwick. Ambos os documentos influenciaram as políticas de saúde europeias e americanas.

Com a reforma do Parlamento inglês, provavelmente decorrente dos transtornos sociais causados, em parte, pela epidemia da cólera, foi indicado Edwin Chadwick para participar da comissão de avaliação da antiga Lei dos Pobres, que se ocupava dos problemas dos miseráveis. Chadwick foi responsável pela elaboração da Nova Lei dos Pobres [promulgada em 1834], mas sua contribuição importante veio em 1839, ao comandar em Londres um inquérito que posteriormente se estendeu por todo o país, vindo a ser publicado em 1842. Este trabalho, que levantava as condições sanitárias das cidades inglesas, evidenciou a íntima relação entre a incidência de doenças infecciosas nas famílias, a falta de higiene e a imundície”. (UJVARI, 2003, p. 155).

Na França, em 1848, foi constituído o Comitê Consultivo em Saúde Pública do Ministério de Agricultura e Comércio; no mesmo ano em que acontecia o I Ato de Saúde Pública na Inglaterra; nos Estados Unidos era criado o Primeiro Comitê de Higiene. Sob a influência de Villermé, Chadwick e Quetelet, em 1850 Shattuck, nos Estados Unidos, escreveu “Construção da Política Completa de Saúde Pública”.

O Relatório Shattuck foi um marco na evolução da Saúde Pública, pela abrangente elaboração e sistematização organizacional, que construiu o modelo da estrutura da Saúde Pública nas Américas, o qual foi difundido por todos os outros Estados que participavam deste processo. A partir deste ponto, com a criação de um Departamento Central, de Departamentos Estaduais e Locais, modelos para Inquéritos Sanitários, a obrigatoriedade de censos decenais, uniformização da nomenclatura das doenças, permanência do mecanismo de coleta de dados estatísticos, foi instituído o Ato de Registros no governo americano, em 1853.

O movimento sanitário americano criou várias “Convenções Nacionais de Quarentena e Saúde”: 1857, 1858, 1859 e 1860, quando houve uma pausa no curso da Guerra Civil (1861-1864). Com sua retomada, em 1864, foi feito um Inquérito Sanitário em Nova York, que resultou no Relatório do Conselho de Higiene e Saúde Pública, cujo resultado principal foi a Primeira Lei de Saúde Pública Americana.

Em 1866 foi criado o Departamento Metropolitano de Saúde com quatro escritórios: Escritório Sanitário, Escritório para Licenças Sanitárias, Escritório para Limpeza das Ruas e Escritório de Estatística Vital. Dentro deste movimento, em 1872 foi fundada a Associação de Saúde Pública Americana. A criação do Departamento Nacional de Saúde aconteceu no período de 1879 a 1883, dentro do Plano para a institucionalização do Departamento Federal de Saúde dos Estados Unidos.

Em 1865, Pettenkofer assumia a Primeira Cadeira de Higiene Experimental em Munique, na Alemanha, sob Bismarck, na ideia de que a assistência médica devia caminhar ao lado da profilaxia social.

Bismarck tinha um Plano Nacional de Saúde: programa de higiene industrial, exigência de licenciamento para todos os médicos, além da nomeação dos médicos por concurso público, e criou o Primeiro Ministério Nacional de Saúde.

Na Inglaterra, em 1875 foi instituído o II Ato de Saúde Pública com a criação de um Departamento Central de Saúde e foram criados Departamentos Locais de Saúde, onde cada distrito passou a ser obrigado a ter um médico sanitarista. Na Alemanha, em 1876 foi criado o Escritório de Saúde do Reich. Estas novas estruturas nacionais de Saúde eram centralizadas, com organização, dinâmica e operacionalização fundadas nas legislações correlatas que foram sendo instituídas.

A origem do movimento internacional da reforma sanitária, sob a necessidade de ações sanitárias transfronteiriças, incluía: Controle das Doenças Transmissíveis, Controle e Melhoria do Ambiente Físico (saneamento), Provisão de água e alimentos em quantidade suficiente, Assistência Médica, Alívio da Incapacidade, e Alívio do Desamparo. Eram problemas que variavam, substancialmente, em prioridades, de acordo com o grau de importância destinado por determinado Estado, mas que foi generalizado a partir da industrialização, da consequente urbanização e dos avanços científicos.

O êxodo rural, o aumento da população urbana, o crescimento da insalubridade das fábricas e das moradias, o aumento das doenças e dos surtos epidêmicos e a disseminação transfronteiriça, com o impulso da pandemia de cólera, causaram a expansão, no século XIX, do movimento internacional pela Reforma Sanitária, que teve como maiores protagonistas: a Inglaterra, os Estados Unidos, a França, a Prússia e a Bélgica.

A partir da ciência da bacteriologia com Pasteur e Koch,

(…) em meados de 1870 tinha-se chegado a um terreno firme, de conhecimento e técnica, para o estudo das bactérias, e das doenças bacterianas. Durante as duas décadas seguintes ocorreram avanços numa rapidez quase explosiva e, em geral, ao longo de duas linhas. Uma característica do trabalho de Koch levou ao desenvolvimento de técnicas para o cultivo e estudo de bactérias; e Pasteur e seus colaboradores dirigiram sua atenção para os mecanismos da infecção e para as consequências deste conhecimento na prevenção e no tratamento de doenças contagiosas (ROSEN, 1994, p. 230).

A bacteriologia passou a ser a base científica para pesquisas e políticas da Saúde Pública porque respondia a questões referentes à causação das doenças epidêmicas e dos meios para preveni-las, com controle ambiental, diagnóstico e tratamento coletivo.

Uma parte substancial do ímpeto do desenvolvimento da bacteriologia e da imunologia foi uma função do imperialismo, pois os impérios ofereciam um forte incentivo ao controle das doenças tropicais, como a malária e a febre amarela, que prejudicavam as atividades dos homens brancos nas regiões coloniais (HOBSBAWM, 1988, p. 349).

Os Estados Unidos, além de formularem o primeiro modelo de administração e política da Saúde Pública por meio do Relatório Shattuck, foram os primeiros que utilizaram, sistematicamente, a bacteriologia na organização da Saúde Pública ao instituir os primeiros laboratórios bacteriológicos para esta finalidade. Em 1892, em Washington, foi criado o Primeiro Laboratório de Higiene.

Neste laboratório, as descobertas de Pasteur, Koch e outros, se viram de modo sistemático, aplicadas à saúde comunitária. A despeito das diferenças no ritmo de desenvolvimento do serviço laboratorial de Saúde Pública, nunca é demais acentuar seu valor para a comunidade. A responsabilidade do governo na proteção da saúde do povo tem, no Laboratório de Saúde Pública, um exemplo. O laboratório representa o resultado prático do período microbiológico, como a organização dos Departamentos de Saúde tinha sido o produto do movimento pela reforma sanitária. Assim como estes forneceram o mecanismo para a administração dos problemas de saúde comunitária, os laboratórios ofereceram um instrumento científico para a execução do programa de Saúde Pública (ROSEN, 1994, p. 244-245).

Os Estados Unidos programaram o modelo de organização da Saúde Pública em nível nacional através da inserção de novas estruturas da ciência da bacteriologia, os laboratórios, dando um salto de qualidade para as pesquisas no campo das epidemias.

Referências bibliográficas

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1 Este não é o texto apropriado para aprofundar este tema, o que será feito em outra oportunidade, mas somente para apontar uma outra vertente deste estudo, a continuidade e decorrente especificidade deste campo com Galton e Pearson, os pais da eugenia, foi por meio de estudos teóricos e empíricos que geraram um movimento científico, social e político – a raiz da ciência eugênica. Esta nasceu na primeira década do século XX, a qual teve o mérito de abarcar todos esses campos, além da filosofia, dentro da ideia de aperfeiçoamento do homem e da sociedade modernos. Maiores detalhes ver ALMEIDA, M. E. (2002) Ciência Eugênica: o nascimento de uma nova ciência (1870-1900), (mimeo) Dissertação de Mestrado, IMS/UERJ. E para análise da difusão político-científica do modelo eugênico americano no século XX, ver BLACK, E. (2003)A Guerra contra os Fracos: a eugenia e a campanha norte-americana para criar uma raça superior. São Paulo: Girafa Ed.